Histórias
interconectadas, histórias cruzadas, abordagens transnacionais e outras
histórias
Historias
interconectadas, historias cruzadas, enfoques transnacionales
y otras historias
Interconnected Stories, Crossed Histories, Transnational Approaches and other Histories
José D’Assunção
Barros
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Resumo: Este artigo objetiva discutir as
mais recentes modalidades historiográficas que, ao lado da História Comparada,
defendem a proposta de lidar com ‘procedimentos relacionais’ –aqui entendidos
como aqueles que se encaminham para além das tradicionais abordagens
historiográficas e atentam para os gestos historiográficos da comparação,
cruzamento, interconexão e ultrapassagem dos limites nacionais e
civilizacionais na escolha dos objetos historiográficos. A história
transnacional, as histórias interconectadas, as histórias cruzadas, entre
outras, são apresentadas em suas singularidades, através das perspectivas dos
autores que utilizam estas designações para os seus próprios trabalhos. O
artigo considera que os procedimentos relacionais podem se referir à definição
do objeto de pesquisa, modos narrativos, procedimentos analíticos, cruzamento
sistemático de fontes e outros aspectos da operação historiográfica. Como
método para trabalhar a discussão historiográfica, recorre-se à comparação
entre textos representativos destas correntes, tomados como fontes para análise
historiográfica.
Palavras-Chave: histórias interconectadas;
histórias cruzadas; histórias transnacionais; História Comparada; procedimentos
relacionais.
Resumen: El objetivo de este artículo es
discutir las más recientes
modalidades historiográficas que, al lado de la
Historia Comparada, defienden la
propuesta de lidiar con “procedimientos relacionales” –aquí entendidos
como aquellos que se encaminan
más allá de los tradicionales abordajes
historiográficos y atentan para los
gestos historiográficos de la comparación,
cruzamiento, interconexión
y superación de los límites nacionales y civilizacionales en la elección de los objetos
historiográficos. La historia transnacional, las historias interconectadas, las
historias cruzadas, entre otras, se presentan en sus singularidades, a través de las perspectivas de los autores
que utilizan estas designaciones
para sus propios trabajos.
El artículo considera que los procedimientos
relacionales pueden referirse a la definición del objeto de investigación, modos narrativos, procedimientos
analíticos, cruzamiento sistemático de fuentes y otros aspectos de la operación historiográfica.
Como método para trabajar la
discusión historiográfica, se recurre
a la comparación entre
textos representativos de estas corrientes, tomados
como fuentes para análisis
historiográfico.
Palabras clave: historias interconectadas;
historias cruzadas; historias transnacionales; Historia
Comparada; procedimientos relacionales.
Abstract: The purpose of this article is to
discuss the most recent historiographical modalities which, together with
Comparative History, defend the aim of dealing with “relational procedures”
–understood here as those that go beyond traditional historiographical
approaches and use the historiographical methods of comparison, crossing,
interconnection and transcending national and civilizational borders in the
choice of historiographical objects. Transnational history, interconnected
histories, and crossed histories, among others, are presented
in their singularities, through the perspectives of the authors who use these
designations for their own works. The article considers that relational
procedures can refer to the definition of the research object, narrative modes,
analytical procedures, the systematic crossing of sources and other aspects of
the historiographical operation. In order to work on the historiographical
discussion, we compared representative texts of these trends, used as sources
for historiographical analysis.
Key words: interconnected
stories; crossed histories;
transnational stories; Comparative History; relational procedures.
Recebido: 24 de julho de 2017
Aceito: 30 de janeiro de 2018
As últimas décadas do século xx, e a passagem para o novo
milênio, têm coroado com novas motivações o já secular desenvolvimento da
História Comparada, e de outras modalidades historiográficas emergentes que
lidam, de uma forma ou de outra, com “procedimentos relacionais”. Contextos
como o das crescentes experiências de associações econômicas, culturais e
políticas entre países diversos, na América Latina, na África, ou na Europa,
têm oferecido um ambiente bastante favorável para o desenvolvimento de
abordagens transnacionais da história. A formação da União Europeia, que se
consolida em 1993 com o tratado de Maastricht, e a fundação da União Africana
em 2002, constituem apenas dois dos exemplos de associações transnacionais que
demandam a necessidade de modalidades historiográficas globalizadoras,
superando os antigos limites nacionais na direção com a qual sonhava Marc Bloch
no primeiro pós-guerra. Afinal, se o mundo começa a ser repensado nos termos de
grupos maiores de países, constituintes de conjuntos formadores de novas
identidades, é oportuno que os historiadores ofereçam alternativas
historiográficas voltadas para estas novas identidades transnacionais.
Ao mesmo tempo, ainda no interior das unidades
nacionais, ou entre elas mas sem implicar
necessariamente na perspectiva transnacional, surgiram as proposições de outros
gestos relacionais para além da comparação: interconexão, cruzamento,
entrelaçamento de histórias, de narrativas, de âmbitos de análise e de escalas
de observação têm se afirmado com especial vigor a partir de novas propostas e
modalidades historiográficas. Chamaremos a estes novos gestos que se juntam aos
procedimentos da “comparação”, e que confrontam os fazeres historiográficos
mais tradicionais, de “procedimentos relacionais”, aqui utilizando uma
expressão que encontramos pela primeira vez em Zimmermann e Werner (2003, p.
90). Neste artigo, examinaremos as modalidades mais recentes que, ao lado da
História Comparada, podem ser abrigadas sob o signo de uma história relacional.
HISTÓRIA GLOBAL, “HISTÓRIAS TRANSNACIONAIS” E OUTRAS
POSSIBILIDADES
As demandas por uma historiografia que
sintonize com as necessidades planetárias, e a necessidade de repensar os
limites do nacionalismo mais uma vez –tal como fizera Marc Bloch no período das
guerras mundiais– levou alguns historiadores a questionar a eficiência da
própria História Comparada no seu já antigo projeto de superar os limites da
perspectiva nacionalista. Afinal, haviam se passado décadas, e muitos não viam
resultados mais impactantes –e capazes efetivamente de redefinir as
sensibilidades historiográficas correntes– na produção concreta dos
historiadores comparatistas. Teria a História Comparada falhado em seu projeto
inicial, e apenas redesenhado de uma nova maneira a história baseada nas cores nacionalistas?
Se a resposta for positiva, como retomar mais seriamente esse projeto perdido?
Autores como Gruzinski quase parecem acusar a
História Comparada de ter dado uma volta sobre si mesma, e de ter se
reconduzido aos parâmetros da historiografia tradicional:
A seleção dos objetos que têm de ser comparados, dos quadros e dos
critérios, as perguntas, os mesmos modelos de interpretação, continuam sendo
tributárias de filosofias ou de teorias da história que muitas vezes já contêm
as respostas às questões do pesquisador. No pior dos casos, a história
comparada pode aparecer como um ressurgimento insidioso do etnocentrismo (Gruzinski, 2001, pp. 175).
Em nossa opinião, a História Comparada foi um
projeto que deu certo. Precisa, naturalmente, dos seus permanentes reajustes.
“Comparar” não é uma operação simples. Não liberta automaticamente os
historiadores das categorias e formas estereotipadas de pensamento que os
amarram, das pressões que sobre eles se exercem. De fato, é possível elaborar
uma História Comparada muito próxima à historiografia contra a qual ela mesma
se insurgiu nos seus primórdios. Todavia, é igualmente viável desenvolver uma
História Comparada crítica, moderna, atualizada, sintonizada com novas
metodologias e perspectivas conceituais. Novos caminhos, desse modo, têm
surgido na família derivada das histórias comparadas. Os olhares e recursos
comparatistas se aprimoram. Novas atitudes e possibilidades entram em cena.
Jürgen Kocka, um dos teóricos que mais têm refletido
sobre os benefícios da História Comparada para esta nova etapa da
historiografia, chama atenção para a conexão da abordagem comparativa com
correntes diversas de um novo campo que já vai sendo denominado história global
ou história mundial:
Há, afortunadamente, muito interesse nos dias de hoje com relação às
abordagens transnacionais para a História. As diferentes correntes de História
Global ou História Mundial são um exemplo disso. Abordagens comparativas,
comparações internacionais e interculturais, são apenas uma forma de perceber o
crescente compromisso trans-nacional. Há outras
formas, por exemplo, de estudos e interpretações usando teorias pós-coloniais (Kocka, 2003, p. 41).
A história global não é motivada apenas pela
necessidade de repensar o mundo a partir destas unidades identitárias
maiores que se tornaram realidades bem presentes nos novos cenários políticos e
econômicos do planeta. Os novos desenvolvimentos globais, tal como assinalam Kocka e outros autores, favorecem de fato o afloramento de
alternativas historiográficas que têm buscado romper com o padrão unilinear de
observação baseado exclusivamente no ponto de vista eurocêntrico, ou, por
extensão, amparados no ponto de vista do Ocidente (Europa e Américas, mas mais
especificamente a Europa e a América do Norte). Ao contrário da tradicional
historiografia eurocêntrica
–esta que começa por construir uma história a partir da Europa, daí irradiando
para o resto do mundo, ou então ajustando dentro desta história eurocêntrica a
história das sociedades não-europeias ou não-ocidentais– a história global
procura precisamente recuperar os demais pontos de vista, não eurocêntricos,
não-ocidentais, não-colonialistas.
A perspectiva da história global é apreender os
múltiplos pontos de vista, e depois interconectá-los, mas sem submetê-los a uma
lógica única, tal como ocorre com uma das perspectivas da história tradicional.
Em uma palavra, trata-se de construir uma história sem um centro único. A
história global, neste caso, não é nem pensada como um agregado desconectado de
histórias nacionais, e nem é tratada como uma história universal que tenta
submeter todas as histórias a uma caminhada única da civilização, à maneira das
antigas histórias universais que têm seus primórdios na Filosofia
da História, de Hegel, e que, embora se modificando com a historiografia
ocidental científica, veio a se desdobrar nas histórias universais que, mesmo
nos nossos dias, continuam unilineares. Pensar o mundo a partir destes novos
padrões de interconexão conduz quase naturalmente ao reconhecimento da
importância da abordagem comparativa. É importante também ressaltar que o olhar
comparado deve ser estendido não apenas para os processos históricos, mas
também para as práticas historiográficas. Em seu livro O
que é a História Global, Crossley (2015), procura
mostrar a existência de diversas estratégias narrativas utilizadas por
historiadores de várias culturas, e procura agregar este reconhecimento de que
não existe um único padrão de fazer historiografia ao seu esforço que definir e
de trabalhar com esta nova modalidade que seria a da história global –uma
história que já não tem um centro, como propunha a antiga perspectiva da
historiografia eurocêntrica. A perspectiva dos novos historiadores que têm
contribuído para a constituição do novo campo da história global implica na
necessidade de atentar não apenas para a História Comparada, mas também para o
que poderíamos entender como uma historiografia comparada.
Para uma melhor compreensão das novas
modalidades que têm surgido com vistas à transposição dos tradicionais limites
nacionais ou regionais –e que, por assim dizer, alcançam o mundo de uma nova
maneira– será oportuno discutir os campos históricos que começam a ficar
conhecidos como histórias interconectadas, histórias cruzadas e histórias
transnacionais. Estas definições ainda estão emergindo no seio do já vasto
universo das designações de modalidades históricas, de modo que, por vezes,
ainda apresentam certa ambiguidade quando confrontadas com a História
Comparada, um campo bem mais definido e que lida com recortes mais precisos,
embora múltiplos. Com a história interconectada, pode-se dizer que o
historiador escolhe conduzir-se criativamente pelo seu tema, o qual –além de
eventualmente ser capaz de levar à transcendência das tradicionais fronteiras
nacionais ou regionais– pode se deslocar através de diferentes grupos sociais,
identidades étnicas, definições de gênero, minorias, classes ou categorias
profissionais. Certos temas prestam-se a este livre fluir historiográfico –a
este surfar através das ondas de um mar no qual parecem ter se dissolvido todos
os recortes tradicionais.
As trocas culturais, no mundo midiatizado e
globalizado, oferecem, por exemplo, um vasto leque de possibilidades de estudo
às “histórias transnacionais”. Sobre esta modalidade, a historiadora Micol Seigel (2005) assinala que
a história transnacional “examina unidades que transbordam e vazam
[infiltram-se] através de fronteiras nacionais, unidades que podem ser tanto maiores como menores do que o Estado-Nação” (pp.
62-90). Tampouco a história transnacional deve ser confundida com a história
global, embora nada impeça a conexão entre as duas modalidades. Seigel tende a enxergar a história global nos termos de um
recorte (um espaço de observação) e a história transnacional nos termos de uma
abordagem, de uma atitude historiográfica. Os historiadores globais, diz-nos
ela, uma vez definido seu campo de interesses, têm diante de si a possibilidade
de escolha entre a perspectiva transnacional e a perspectiva já tradicional da
história internacional: “A História Transnacional não se propõe simplesmente a
recobrir um maior espaço; não é equivale à História Mundial –já que os
historiadores mundiais [globais], tal como todo mundo mais, precisam ainda
escolher entre as abordagens transnacional ou internacional” (Seigel, 2005, p. 63).
Ao mesmo tempo, os objetos da história
transnacional não se estendem necessariamente para o espaço ampliado que se
torna típico da história global. Assim, ainda que os historiadores globais
–assim definidos pelos seus objetos de estudo e territórios de observação
historiográfica– possam optar pela abordagem da história transnacional em
desfavor da abordagem da História Internacional, há historiadores
transnacionais cujo estudo pode perfeitamente se conformar em um território
historiográfico situado entre limites nacionais, desde que o problema por eles
examinados o levem a avaliar a interação entre o local e o global (os reflexos
do global no local, por exemplo, ou mesmo o contrário.
A história transnacional, deste modo, não se
liga a uma aversão ao nacional. Seu desafio, sim, é enfrentar não o “nacional”,
mas a noção arraigada de que o “nacional” (ou um mundo dividido em nações como
unidade de análise) deve ser a categoria predominante. Para a perspectiva
transnacional de Micol Seigel,
a nação se apresenta como fenômeno social que se situa ao lado de uma série de
outros, mais do que o quadro de estudos por si mesmo. Ou seja, a nação pode ser
perfeitamente estudada em uma perspectiva transnacional, e estudos
transnacionais podem se apresentar no interior de fronteiras nacionais. O que
não pode ocorrer, para se ter uma perspectiva transnacional, é que a categoria
da “nação” se apresente como a categoria central que conduz o pensamento
historiográfico. A nação é algo a ser estudado; não é o quadro que emoldura o estudo
como uma categoria a-histórica e incontornável.
Deborah Cohen (2004), por sua vez, acrescenta
um elemento importante em sua busca de apreensão deste novo campo de
possibilidades que seria o da história transnacional, situando-o
particularmente em confronto com o próprio campo da História Comparada. Segundo
ela, enquanto a história comparada “ocupa-se fundamentalmente das diferenças e
semelhanças” e frequentemente de ‘questões de causalidade’, já as histórias
transnacionais, em franco contraste com relação a esses aspectos, “podem nos falar sobre circulação transnacional, história das
trocas culturais, fenômenos internacionais” (Cohen, 2004, p. 24). Não se trata
mais, com as histórias transnacionais, e também com as histórias
interconectadas e as histórias cruzadas, de meramente delimitar um certo número
de recortes bem definidos, o que tem sido a operação central e a base de apoio
das correntes da História Comparada que já vão se consolidando na sua forma
mais tradicional. Pode-se mesmo dizer que há temáticas contemporâneas que já
não se prestam a tais recortes. As redes sociais, por exemplo, os transcendem;
as nacionalidades continuam a existir aqui como fenômenos de identidade,
marcadores dos usuários, elementos instituidores de exclusão ou inclusão, mas o
ambiente virtual já não conhece fronteiras, a não ser, eventualmente, a língua.
O não-lugar instituído pela rede mundial de computadores através das redes
sociais é apenas um exemplo. O mundo contemporâneo conhece também a formação de
identidades diversas, que já não se definem nacionalmente. De igual maneira, a
recepção de determinado produto –concreto ou virtual– atende a padrões de
circulação que se perderiam se o historiador decidisse limitar o seu estudo a
determinadas populações nacionalmente localizadas, regionalmente definidas em
termos de uma visibilidade tradicional do espaço. O cinema estende sua complexa
malha para além dos seus sistemas localizados de produção. A música possibilita
formas de deslocamento diversas. Determinados circuitos constituídos
necessariamente pela própria circularidade transnacional, inclusive para
períodos mais recuados, rejeitam francamente a possibilidade de observância dos
habituais recortes nacionais. É o caso da história atlântica –esse domínio
temático que implica um universo circular e intercontinental por definição–1 ou também
dos estudos das “borderlands” (fronteiras),2 que inserem
necessariamente o historiador em um complexo território de ambigüidades.
A história da diáspora negra, da mesma forma, implica a transnacionalidade.
Ao lado da história transnacional, vale lembrar
ainda que tanto este campo histórico como o das histórias cruzadas ou o das
histórias entrelaçadas –dois outros domínios que já examinaremos– pressupõem
possibilidades de mudanças no próprio estilo historiográfico (isto é, na
maneira de escrever ou de expor os resultados da pesquisa). Possivelmente, essas
e outras novas modalidades historiográficas têm muito a aprender com o romance
moderno, com o cinema e com outras práticas no que se refere aos novos modos de
conduzir narrativas e as análises entrelaçadas. Elas também clamam por um novo
padrão de leitura. As cartas estão colocadas, e o caleidoscópio historiográfico
dá sinais de se movimentar mais uma vez. Se essas novas modalidades constituem
um campo novo e diferenciado em relação à História Comparada –ou mesmo um
espaço teórico-metodológico divergente em relação aos aportes comparatistas–
esta é ainda uma discussão em curso. Micol Seigel, em seu artigo “Além da Comparação”, argumenta que a
história transnacional está em campo divergente em relação à História
Comparada. Refere-se, inclusive, a uma “virada transnacional” definidora de
novos caminhos (Seigel, 2005, p. 62).3
Por outro lado, se ampliarmos o sentido de
comparação –ou se ao menos lidarmos com um sentido mais estrito para o comparativismo mais tradicional, que fixa de maneira mais
rígida os recortes a serem dispostos em comparação, e com um sentido mais
amplo, que considera a comparação como signo de uma família maior de
“procedimentos relacionais”– poderemos pensar em uma família mais extensa de
modalidades históricas que rompe com os recortes monocentrados
da historiografia. A História Comparada, no sentido mais amplo de “história
relacional”, representaria neste caso uma família de modalidades
historiográficas que visam libertar o historiador dos limites impostos pela
obsessão da continuidade espacial e pelas ilusões de isolamento geopolítico,
entre outras travas que comprimem o habitual olhar historiográfico.
De nossa parte, acreditamos que é mais rico
agrupar as modalidades relacionais do que investir na fragmentação desta
família de campos historiográficos. Os procedimentos relacionais –comparatismo,
interconexão, entrelaçamento, cruzamento, apreensão de dinâmicas
transnacionais– podem encontrar abrigo nas linhas de pesquisa de laboratórios e
associações de historiadores preocupados em não se deixar imobilizar pela
rigidez dos recortes historiográficos tradicionais. Esses procedimentos
relacionais, além do mais, podem se combinar, e não são necessariamente
excludentes uns em relação aos outros.
HISTÓRIAS INTERCONECTADAS
É difícil prever quais das novas designações
que têm surgido no cenário historiográfico –história global, história
transnacional, histórias interconectadas, histórias cruzadas, entre outras–
serão assimiladas efetivamente pelo vocabulário historiográfico com o qual
passarão a lidar as futuras gerações de historiadores. As expressões podem
desaparecer ou recuar do cenário principal tão rapidamente como surgiram.
Algumas se consolidarão. Outras passarão para a história da historiografia.
Quais, entre as designações de novas modalidades, permanecerão no futuro
vocabulário dos historiógrafos?
O gesto relacional que agora examinaremos é o
da “interconexão”. De certa maneira, pode-se dizer que a prática das histórias
interconectadas envolve a possibilidade de religar experiências diversas de uma
nova maneira, renovando o esforço que já havia sido realizado pela História
Comparada mais tradicional no sentido de pensar novas possibilidades de
recortes. A imagem de interconexão, por outro lado, remete tanto a
possibilidades narrativas como a possíveis pontos problemáticos de conexão, sem
mencionar que algumas realidades historiográficas complexas, como a dos grandes
impérios que abarcam dentro de si mundos culturais diversos, parecem convidar
ao estabelecimento de conexões com vistas a uma apreensão mais plena da
realidade examinada. Nas histórias interconectadas, as histórias devem se
encadear de algum modo.
A expressão inglesa “connected
histories” –que para o Português adaptaremos como “histórias interconectadas”–
foi criada pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, estudioso do império português no período
moderno. Segundo sua perspectiva, a história –ou “as” histórias– só podem ser,
rigorosamente falando, múltiplas e diversificadas (ainda que interconectadas),
e não constituem em absoluto uma única e grande história, homogênea, linear,
conduzida em uma única direção. Gruzinski (2001)
assim descreve esse novo campo de possibilidades no que se refere às demandas
que o geraram:
Diante de realidades que convém estudar a partir de múltiplas escalas, o
historiador tem de se converter em uma espécie de eletricista encarregado de
restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais que as
historiografias nacionais desligaram ou esconderam, bloqueando as suas
respectivas fronteiras. As que dividem Portugal e Espanha são típicas: várias
gerações de historiadores escavaram entre os dois países fossos tão profundos,
que hoje é preciso muito esforço para entender a história comum a estes dois
países e impérios (pp. 176-177).
As histórias conectadas, ou “histórias
interconectadas”, surgiram neste mesmo grande movimento que se tem construído
em torno da sugestão de favorecer a ultrapassagem das fronteiras
historiográficas artificiais. Não constituem necessariamente “histórias
transnacionais”, embora frequentemente também o sejam, no sentido de que o
historiador é quem define o que estará “conectando”. Por outro lado, certos
objetos e problemas históricos, em decorrência de suas próprias características,
quase demandam a combinação entre histórias conectadas e história
transnacional. Entrementes, as balizas nacionalistas, categorias nacionais de
hoje e direcionamentos estereotipados parecem pesar de tal modo sobre a prática
historiográfica que, mesmo diante da demanda de uma realidade histórica já multidiversificada por si mesma, historiadores tendem a
recuar para os limites tradicionais que mantém correspondências com o
imaginário nacionalista ou com recortes político-administrativos mais habituais.
É o que nos diz Gruzinski (2001) ao comentar os
estudos sobre a monarquia católica do início do período moderno:
Enquanto os historiadores costumam preocupar-se em inventar e construir
novos objetos definindo territórios e cronologias, a Monarquia católica forma
uma realidade preexistente no espaço e no tempo. Essa preexistência não
significa que os historiadores tenham espontaneamente adotado o território do
império como campo de observação. Muitas vezes, esta realidade gigantesca,
bastante heterogênea e fragmentada para se deixar facilmente estudar, foi
escamoteada nas abordagens hispanocêntricas. O livro
recente de Geoffrey Parker, The World is
not enough. The Grand stategy of Philip II,
apesar do seu título e das suas ambições, contém poucas coisas sobre as
dimensões africanas, asiáticas e americanas da monarquia. Acontece o mesmo com
abordagens italianas que não tomam em conta as Américas ibéricas, Portugal e
Ásia nas suas reflexões sobre o ‘sistema imperial (p. 179).
Desta forma, mesmo diante dos objetos que
expõem uma enorme riqueza de possibilidades já ao primeiro olhar, muitos
historiadores deixam-se conduzir pelos caminhos em pontilhado que tantos já
percorreram, sempre os mesmos, deixando que se percam possibilidades de
pesquisa e de tratamentos historiográficos fora da linearidade habitual. As
histórias interconectadas, assim como outras similares, requerem acima de tudo
um rompimento em relação aos padrões historiográficos que costumam orientar as
escolhas temáticas habituais, às quais uma boa parte da historiografia já se
acostumou de modo demasiado rígido. Liberar o olhar historiográfico parece ser
a sua pré-condição.
As “histórias interconectadas” parecem tender
as serem assumidas como designação mais relacionada aos novos centros emergentes
de produção do saber historiográfico –e não é à toa que a expressão surgiu na
obra de um historiador indiano. Não obstante, Serge Gruzinski,
pesquisador interessado em realidades culturalmente multidiversificadas
como a do México antigo ou a do império português/hispânico, também assume essa
mesma designação para alguns de seus trabalhos. O trabalho de Gruzinski sobre o Império Hispânico-Português talvez
pudesse se associar ainda com maior eficácia à designação das “histórias
entrelaçadas”, se considerarmos que o universo histórico por ele estudado
abarca toda uma diversidade de realidades culturais e civilizacionais que
passaram a se entrelaçar sob a orquestração dessa
unidade política de extensões planetárias que foi a da União Ibérica. De todo
modo, a possibilidade de transitar menos ou mais livremente entre as
designações apenas atesta a íntima proximidade dessas perspectivas de estudos.
Enquanto as “histórias interconectadas” têm se
afirmado preferencialmente como designação historiográfica nos meios
não-europeus de produção do saber histórico, ou ao menos são encaminhadas por
historiadores de qualquer parte que estão particularmente interessados nos
contextos não-europeus como objetos de estudo,4
a história cruzada parece estar afirmando a sua base a partir de um grupo
francês ligado à ehess,
em Paris. Por outro lado, também alguns historiadores britânicos e americanos,
particularmente os interessados na história atlântica, têm disputado a designação.
Para fechar o circuito, podemos lembrar que as já discutidas “histórias
transnacionais” apresentam uma grande recorrência, entre seus praticantes, de
historiadores americanos. Existe, conforme se pode entrever, uma certa disputa
e oposição de designações que nem sempre se refere mais rigorosamente a
questões historiográficas específicas, e sim à sua inserção em certos centros
ou laboratórios de pesquisa.
Ilustraremos a modalidade de “histórias
interconectadas” com o belo livro que Peter Linebaugh
e Marcus Rediker (2008) intitularam A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a
história oculta do Atlântico revolucionário. Através de histórias
diversas –construídas a partir de uma surpreendente “vista de baixo” que revela
uma face até então inédita nos estudos da formação do capitalismo seiscentista
e setecentista– os autores conseguem criar uma grande interconexão que é
precisamente a resistência oculta a esse processo global. Trata-se recuperar
“centelhas perdidas”, para retomar uma célebre expressão de Walter Benjamin
(2008) em suas Teses sobre o conceito de História
[1940], ou de instituir uma forma visibilidade que a historiografia oficial
negou aos motins de marinheiros insubordinados, aos náufragos lançados ao mar
pelas aventuras colonizadoras, às conspirações portuárias, às revoltas e
rebeldias de escravos, às resistências cotidianas dos proletários ingleses de
ambos os lados do atlântico ou à formação de redes atlânticas de pirataria que
configuravam um sistema paralelo de poder e sociabilidades, sem deixar de
lembrar os grupos radicais da revolução inglesa.
Na obra de Linebaugh
e Rediker, o Atlântico Norte –esse mar concreto,
imaginário, fornecedor de riquezas ou de naufrágios, mediador do degredo ou do
comércio, percebido do porto ou de dentro dos navios, observado do ponto de
vista de uma liberdade oprimida ou de uma escravidão imposta– é o grande elo de
ligação. O mar é o personagem que estende seu manto por sobre todas as
histórias que, aqui, encontram interconexão através de uma densa análise
apoiada em uma diversificada documentação. Este grande espaço fluído que une o
mar e as zonas portuárias e litorâneas trianguladas pela Europa, África e
Caribe –pontos nodais de um sistema comercial muito específico– é o que
oferece, a essas histórias interconectadas, o seu ambiente, seu cenário, seu
meta-enredo, sua possibilidade de se abrigarem sob uma circularidade de modos
de resistência e práticas revolucionárias.
O inusitado título do livro estabelece um novo
liame. A “Hidra de Lerna” era um monstro pantanoso de
diversas cabeças –o qual, na mitologia grega, Hércules havia enfrentado no
segundo dos seus doze trabalhos. A Hidra de Lerna
parecia invencível até ser enfrentada por Hércules. Cortada uma das suas nove
cabeças de serpentes, renascia outra. Os autores utilizam a metáfora para
mostrar o constante reaflorar das resistências ao
capitalismo global e às suas opressões e imposições no período considerado,
através das mais diversas formas e dando vida a histórias diversas. A imagem foi
extraída de um lugar comum muito presente na linguagem das próprias classes
dominantes e governantes que –com um misto de desprezo, receio e impiedoso
rigor– submetiam aqueles que resistiam às margens do capitalismo em formação:
Os governantes usaram o mito de Hércules e da hidra para descrever a
dificuldade de impor a ordem em sistemas de trabalho cada vez mais globais,
apontando aleatoriamente plebeus esbulhados, delinquentes deportados, serviçais
contratados, extremistas religiosos, piratas, operários urbanos, soldados,
marinheiros e escravos africanos como as cabeças numerosas e sempre cambiáveis
do monstro (Linebaugh e Rediker,
2008, p.12).
O terceiro liame entre as histórias
interconectadas que foram unidas pelo livro de Linebaugh
e Rediker é conceitual. Os autores estabelecem uma
unidade analítica através do conceito de “proletariado atlântico”, uma
categoria translocal, transfuncional
e interétnica que abrange grupos sociais tão
diversificados como os marinheiros em geral, os camponeses ingleses expropriados
que passam a ser absorvidos pelo capitalismo urbano, os africanos escravizados
e traficados, e os nativos americanos incorporados ao sistema através de outros
tipos de trabalho compulsório. A unidade conceitual através de uma análise que
abrange diversos tipos de trabalho, mas que os integra em uma única categoria
narrativa, é o contraponto da unidade conceitual que une os diversos tipos de
personagens através do conceito de “Atlântico revolucionário”. O fio conceitual
é o terceiro elemento da trama que une as histórias interconectadas
apresentadas por Linebaugh e Rediker.
É importante ressaltar que as histórias
trazidas a primeiro plano por Linebaugh e Rediker são interconectadas sob uma perspectiva
efetivamente transnacional. Através do Mar e do circuito triangular que une
Europa, África e América, as experiências circulam e interagem com os diversos
grupos envolvidos de cada lado do Atlântico, constituindo um poderoso fator que
move, influencia e refaz a história dos diversos grupos sociais que constituem
essa grande e diversificada população que os autores chamaram de “proletariado
atlântico”. Podemos dizer que, deste modo, unem-se aqui as modalidades que
podem ser definidas como “histórias interconectadas” e “histórias
transnacionais”.
É também uma proposta de histórias
interconectadas, igualmente em conexão com uma perspectiva transnacional –mas
agora trazendo ao âmbito comparativo-relacional as unidades nacionais mais
amplas que podem ser apreendidas por uma perspectiva macro-histórica–
o que temos com “Connected Histories: Notes towards a Reconiguration of Early Modern
Eurasia” de Sanjay Subrahmanyam (1997, pp. 735-762). O próprio autor –em sua
intenção de iluminar uma compreensão do Japão moderno a partir de uma
perspectiva que aborda também outros países asiáticos– situa seu artigo como
uma resposta indireta a outro texto, no qual Lieberman (1991) compara seis
experiências euro-asiáticas: Burma,
Sião, Vietnam, França, Rússia e Japão (pp. 1-31). Estudos como estes –de um e
outro autor– mostram que, ainda que o ponto de partida ou motivação central
seja compreender um processo histórico em certo país, a perspectiva
transnacional ou interconectante pode ser alcançada
ampliando o universo de observação com vistas a incorporar a análise de outras
sociedades ou unidades políticas. Por vezes, esta ampliação de universos de
observação é mesmo fundamental para corrigir distorções. Não é por acaso que Subrahmanyam (1997, p. 735) –em seu artigo sobre a conexão
do Japão com outros países asiáticos– toma para epígrafe uma passagem em que
Tanaka Yuko (1995) identifica a tendência do
imaginário japonês moderno a minimizar as conexões com os demais países
asiáticos, ao mesmo tempo em que valorizm as
interconexões com o ocidente:
A maioria dos japoneses, mesmo hoje, costumam acreditar que o universo
político-cultural do período Edo foi fundamentalmente determinado pelo
fechamento do país. Também tendem a considerar que a abertura do Japão pode ser
reduzida ao desenvolvimento dos intercâmbios com o Ocidente, após o surgimento
do regime Meiji. É difícil, para os japoneses de
hoje, imaginar que o Japão se desenvolveu em relação com outros países
asiáticos, já que são pouco acostumados a valorizar as demais culturas
asiáticas (p. 281).
Ao lado disso, conforme assinala, Subrahmanyam (1997), a prática de trabalhar com
interconexões mais ricas pode se mostrar particularmente importante para evitar
os riscos de aceitação muito fácil de uma história global oficial, ou mesmo da
aceitação naturalizada e suas categorias-chave, que remeteria, mais uma vez, à
perspectiva ocidentocêntrica:
O início do período moderno levanta uma série de questões-chave que
podem ser tratadas sob a perspectiva mais ampla da “antropologia histórica”.
Assim, é de evidente interesse examinar como as noções de universalismo e
humanismo emergiram em vários vocabulários, e ainda como estes termos de fato
não uniram propriamente o mundo moderno nascente, mas antes levaram a novas ou
intensificadas formas de hierarquia, dominação e separação (pp. 739-740).
Compreende-se que –ao escrever a partir de um
lugar de enunciação historiográfica situado na Ásia, e que se quer colocar em
criticidade em relação às habituais perspectivas europeias e americanas sobre a
inserção do continente asiático em uma história global– Subrahmanyam
mostre uma atitude de desconfiança em relação aos modelos europeus de percepção
da historiografia, inclusive a História Comparada que, à época de Bloch, era
pensada como uma alternativa para ultrapassar historiograficamente
a crise dos nacionalismos europeus. A importância de abrir novas perspectivas
como a das histórias interconectadas, as quais situam fora de uma hierarquia as
diversas histórias inseridas no planeta, e de opô-las ao modo comparativo
europeu, surge como uma questão de ordem importante. O ponto de vista
transcendente que compara de cima os diversos recortes –mas que pode resvalar
muito facilmente para a prática condescendente de admitir o outro
mas conservando basicamente a leitura ocidental– é substituído pelo
deslocamento dos pontos de vista, pela alternância efetiva dos centros
narrativos e analíticos. É essa postura fundamental que está na determinação de
Subrahmanyan (1997, p. 744) em firmar uma oposição
entre as perspectivas das histórias interconectadas e da história comparada. A
História Comparada –quando escrita de um ponto de vista transcendente
mas, na verdade, ainda autocentrado, e grafada com o “H” maiúsculo– deve ser
substituída pelas histórias múltiplas, sentidas historiograficamente
por dentro e interconectando-se de modo a promover um deslocamento dos pontos
de vista. Histórias ligadas sem uma hierarquia e comunicantes entre si,
produzindo de fato uma perspectiva multifacetada: eis a interconexão
historiográfica.
A rejeição mais radical dos modelos
historiográficos ocidentais, incluindo a da própria posição autocrítica que foi
trazida pela História Comparada na primeira metade do século xx, demarca a proposta da
história interconectada na fundação desta designação por Subrahmanyam.
Mas isto não quer dizer que, em releituras posteriores desta perspectiva, não
possa ser proposta uma complementaridade entre os gestos da interconexão e da
comparação. Essa tendência tem se afirmado significativamente. Podemos evocar a
conciliação crítica proposta por Coelho Prado (2005) ao rever simultaneamente
as posições mais radicais de Subrahmanyam e Gruzinski:
Penso, ainda, que a escolha da história comparada não exclui a abordagem
de histórias conectadas. A única crítica metodológica indicada por Serge Gruzinski com relação à comparação refere-se à dificuldade
de escapar da visão eurocêntrica e dos modelos dicotômicos. Do meu ponto de
vista, é possível fazer história comparada e permanecer crítico das visões
eurocêntricas e dicotômicas. Assim, entendo que há mais complementação entre
comparação e conexão, do que exclusão (p. 30).
Subrahmanyam (1997), em seu principal artigo
sobre a necessidade de afirmação das histórias interconectadas diante do quadro
de modalidades já consolidado pela historiografia europeia, destaca como conceitos
e perspectivas como a do “nacionalismo”, encaminhadas ao modo da historiografia
tradicional, “blindaram-nos contra a possibilidade da interconexão” (p. 761).
No entanto, é importante não perder de vista a possibilidade de que se
encaminhe uma crítica a crítica à historiografia nacionalista mesmo no interior
de nossa própria tradição historiográfica, tal como exemplificou Marc Bloch no
próprio gesto de fundar, com outros historiadores, uma perspectiva de História
Comparada no primeiro pós-guerra.
Abrir perspectivas comparadas, transnacionais
ou interconectantes, enfim, pode ser de fato vital
para fugir a certas distorções que se consolidaram imperativamente, por um
motivo ou por outro. Exemplos de aberturas e caminhos historiográficos
interessantes poderiam ser evocados, incluindo as diversificadas formas de
encaminhar histórias interconectadas que têm surgido nos mais recentes
horizontes historiográficos. Seria possível pensar a combinação da experiência
das histórias interconectadas com a Micro-História. Pequenas mas significativas histórias, envolvendo diferentes
atores sociais ou distintos ambientes de sociabilidade –também poderiam
encontrar a sua ligação, seja a partir das grandes questões que incitam, seja a
partir de certo padrão narrativo. Essas micro-histórias
também poderiam ser abordadas sob a perspectiva que mais propriamente poderia
ser chamada de “histórias cruzadas”, no sentido de que fazem parte não apenas
da mesma trama historiográfica construída pelos historiadores, mas também de
uma trama histórica na qual os personagens e situações se cruzam na sua própria
época.
Conforme antes mencionado, o gesto de
“interconectar”, “cruzar” ou “entrelaçar” histórias –ou, reunindo todas estas
perspectivas em uma expressão única, o “gesto relacional”– constitui uma
operação que pode se referir tanto à apreensão do objeto ou à construção da
problematização, como à elaboração da narrativa ou do modo de encaminhar o
entrelaçamento de análises. Neste último aspecto –a possibilidade de elevação
do “gesto relacional” à elaboração do texto do historiador– podemos nos
perguntar o que a história poderá aprender, nas próximas décadas, com o cinema
e a literatura.
Para finalizar esta sessão, é importante ter em
vista que, na elaboração do texto histórico, a possibilidade de
“interconectar”, “entrelaçar” e “cruzar” não se aplica apenas ao aspecto
narrativo, mas também ao aspecto analítico. Por um lado, o historiador pode
trabalhar com a elaboração de narrativas interconectadas e cruzadas; mas ao
lado disso deverá trabalhar –e isto é o principal– com análises interconectadas
e análises cruzadas. “Interconectar”, “cruzar”, “entrelaçar” não são apenas
gestos narrativos. No caso da história, são também gestos analíticos.
HISTÓRIAS CRUZADAS
A noção de “história cruzada”,5 tal como a
de “histórias interconectadas”, ainda oscila em torno de certas possibilidades
de sentido. Trata-se de uma noção que vem se construindo no horizonte
historiográfico mais recente. Bénédicte Zimmermann e
Michael Werner (2003), em um artigo no qual procuram delimitar essa modalidade,
assim se expressam acerca dos caminhos historiográficos que poderiam ser
situados sob a designação de história cruzada ou histórias cruzadas, no singular ou no plural conforme o
caso:
Empregada há cerca de dez anos em ciências humanas e sociais, esta noção
deu lugar a vários usos. Na maioria dos casos ela remete, de modo vago, a uma
ou a um conjunto de histórias, associadas à ideia de um cruzamento não
especificado. Ela aponta então simplesmente para uma configuração de
acontecimentos, mais ou menos estruturada pela metáfora do cruzamento.
Frequentemente, aliás, tais usos evocam histórias cruzadas,
no plural. Este emprego corrente, relativamente indiferenciado, distancia-se
das práticas de pesquisa que procuram uma abordagem mais específica. Neste
caso, a história cruzada relaciona, geralmente em escala nacional, formações
sociais, culturais e políticas, partindo da suposição que elas mantêm relações
entre si. Ela enseja por outro lado uma reflexão acerca da operação que
consiste em “cruzar”, tanto no plano prático como no plano intelectual. Mas
estes usos estão apenas começando a fixar-se (pp. 89-90).
Os autores prosseguem mostrando que a história
cruzada inscreve-se nessa família de campos históricos que foi inaugurada pela
História Comparada há muitas décadas, e que pode ser compreendida sob o signo
dos “procedimentos relacionais”, contando com a adesão de outros campos
historiográficos mais recentes que, além da comparação, investiram nos “estudos
de transferência”,6 na
elaboração das “histórias interconectadas” e na edificação de um campo que, em
português, poderia ser traduzido como “história compartilhada” (shared history). A filosofia das “histórias compartilhadas”
seria a mesma que ampara os projetos voltados para o patrimônio comum entre as
histórias de dois países que tiveram seu passado entrelaçado por algum liame
muito forte, como é o caso das sociedades que estiveram ligadas por laços de
colonialismo (caso de Brasil e Portugal, que mereceram o já mencionado Projeto Resgate com vistas à disponibilização mútua de um
patrimônio documental em comum). Ao mesmo tempo, podemos pensar em temáticas
diversas que poderiam remeter a shared histories, como é o caso da história de minorias
religiosas que, em um país com uma forma religiosa dominante, partilham os
mesmos processos de enfrentamento em relação aos mecanismos de repressão. Por
outro lado, há empenho dos autores em captar a especificidade da história
cruzada. Todavia, reúnem como aspectos formadores desta especificidade itens
que, rigorosamente falando, não são estranhos às corretas perspectivas
comparatistas, ou mesmo à História como um todo:
Mas a história cruzada ambiciona tratar objetos e problemáticas
específicas que escapam às metodologias comparatistas e aos estudos de
transferências. Ela permite apreender fenômenos inéditos a partir de quadros
renovados de análise. Assim fazendo, ela fornece a ocasião de sondar, por um
viés particular, questões gerais como escalas, categorias de análise, relação
entre sincronia e diacronia, regimes de historicidade e de reflexividade.
Enfim, ela coloca o problema da sua própria historicidade a partir de um triplo
procedimento de historicização: do objeto, das
categorias de análise e das relações entre o pesquisador e o objeto. Oferece,
assim, uma “caixa de ferramentas” que, mais além das ciências históricas, pode
ser operacional em muitas outras disciplinas que cruzam as perspectivas do
passado e do presente (Zimmermann e Werner, 2003, p. 90).
De resto, a “caixa de ferramentas” proposta por
Zimmermann e Werner não deveria deixar de estar presente em todas as
modalidades da família das histórias comparadas, ou mesmo na oficina do
historiador, de modo geral. Uma contribuição os autores é chamar atenção para o
fato de que determinadas categorias e escalas já tradicionais para a definição
dos objetos da História Comparada –região, Estado-nação, civilização– precisam
ser elas mesmas repensadas a partir da sua historicidade. Nenhuma dessas
categorias é “unívoca ou generalizável”, continuam os autores, mas sim
“carregadas de conteúdos específicos e, portanto,
difíceis de transpor em quadros diferentes”. De igual maneira, a escolha da
escala nunca é neutra, “mas sempre já marcada por uma representação particular
que mobiliza categorias específicas historicamente constituídas” (Zimmermann e
Werner, 2003, p. 90).
Situados os problemas que desafiam as
modalidades baseadas em “procedimentos relacionais”, Zimmermann e Werner
empenham-se em delimitar mais propriamente o que seria a História Cruzada,
segundo a sua proposta. “Cruzar”, conforme salientam os autores, é “dispor duas
coisas sobre a outra em forma de cruz”. A imagem da cruz, efetivamente, permite
em pensar pontos de intersecção entre as diversas realidades em cruzamento.
Trata-se de uma imagem que também rompe com a perspectiva de linearidade que
temos, por exemplo, com a imagem de um pólo atuando
sobre o outro que aparece mais comumente nos estudos de transferências
culturais, que são criticados pelos autores como modelos que estabelecem pontos
de partida e de chegada muito definidos. Os pontos de intersecção são lugares
onde “podem-se produzir acontecimentos suscetíveis de afetar em graus diversos
os elementos em presença, segundo sua resistência, permeabilidade,
maleabilidade, e de seu entorno”. “Essa ideia de interseção”, continuam os
autores, “está no princípio mesmo da história cruzada” (Zimmermann e Werner,
2003, p. 96).
A imagem de cruzamento também aparece de outra
forma quando se pensa no entrelaçamento, e não é de se estranhar que também
tenha surgido a designação de “histórias entrelaçadas” como mais uma
alternativa entre as expressões que buscam nomear os modos de fazer história
que concebem realidades ou processos que se interpenetram, que entram uns nos
outros, que interagem de uma maneira tal que já não se mostra possível
considerar cada unidade ou fio isoladamente. Zimmermann e Werner (2003)
atribuem um significado muito especial à ideia de cruzamento,
e a situam no cerne de uma diferença patente entre a história cruzada e a
“história comparada” (expressão com a qual designam as práticas mais
conservadoras e simplificadoras da história comparada no sentido tradicional,
em nossa opinião):
A noção de interseção exclui de início o raciocínio a partir de
entidades individuais, consideradas exclusivamente por elas mesmas, sem ponto
de referência exterior. Ela rompe com uma perspectiva unidimensional,
simplificadora e homogeneizadora, em benefício de uma abordagem
multidimensional que reconheça a pluralidade e as relações complexas que daí
resultem. Desde logo, as entidades ou os objetos de pesquisa não são apenas
considerados uns em relação com os outros, mas igualmente uns através dos
outros, em termos de relações, interações, circulação. O princípio ativo e
dinâmico do cruzamento aqui é primordial, em contraste com o quadro estático de
comparação que tende a fixar os objetos (p. 96).
Desde já, percebe-se quer a proposta de
história cruzada encaminhada por Zimmermann e Werner insurge-se contra aquelas
práticas de história comparada que recaíram em operações estabilizadoras, meras
superposições de objetos ou realidades isoladas unidas por um liame de análise
que, ainda que os unindo no interior de uma interpretação historiográfica,
conserva-os separados. Depreende-se das propostas de Zimmermann e Werner a
intenção de que não se perca o objetivo de conceber dois ou mais objetos em
interação e com uma atenção redobrada aos modos como eles se modificam um ao
outro, no caso das realidades sincrônicas que apresentam uma relação efetiva
não apenas na imaginação do historiador. A demanda por uma especial atenção às
interações, que se torna possível a partir do modelo das histórias cruzadas, e
a concomitante crítica ao comparativismo tradicional
como um modelo que costuma isolar os objetos em análise, também é encaminhada
por Eliga H. Gould (2007). Acompanhando um comentário
de Kocka (2003, p. 43) –Gould ressalta que, “mais do
que insistir na comparabilidade de seus objetos ou na equalidade
de tratamentos entre eles”, as histórias cruzadas estão preocupadas com as
“influências mútuas”, com as “percepções recíprocas ou assimétricas”, com os
processos entrelaçados que se “constituem um ao outro” (Gould, 2007, p. 766).
Indo para além da percepção inicial de que certos universos históricos –como o
Império Espanhol ou o Império Britânico do início da modernidade– praticamente
impõem a necessidade da abordagem cruzada com vistas a favorecer a compreensão
da sua multidiversificação interna, Gould sugere que
“longe de constituírem diferentes entidades, tal como os estudos comparativos
usualmente sugerem, os dois impérios [espanhol e britânico] foram partes do
mesmo sistema ou comunidade hemisférica” (Gould, 2007, p.766). Deste modo, o
cruzamento no interior de uma realidade sincrônica é explorado aqui em toda a
sua máxima extensão.7 De resto,
as experiências de construção de histórias cruzadas do Atlântico seguem
adiante, produzindo inclusive perspectivas divergentes, como é o caso da
proposta de Jorge Canizares-Esguerra (2007, pp.
787-799) –historiador que critica a proposta de Gould e de outros pesquisadores
a ele ligados em um artigo que traz um sugestivo título: “Histórias Cruzadas:
histórias de fronteiras em novas roupas?” Retornemos, entrementes, às
considerações de Zimmermann e Werner sobre a história cruzada e suas
implicações:
Cruzar é também entrecruzar, entrelaçar, ou seja, cruzar diversas vezes,
segundo temporalidades eventualmente distanciadas. Este caráter pelo menos
parcialmente processual é o 3° aspecto constitutivo de uma problemática de
cruzamentos. Remete-nos à análise das resistências, inércias, modificações
–das trajetórias, de formas, de conteúdos–, ou, de combinações que podem ora
resultar do cruzamento, ora nele se desdobrar. Tais transformações, aliás, não
se limitam necessariamente aos elementos postos em contacto;
elas podem ainda tocar seu entorno próximo ou distante e manifestar-se segundo
temporalidades distintas (Zimmermann e Werner, 2003, p. 96).
Situar elementos diversos em cruzamento, como
ressaltam os dois autores, pressupõe considerar a natureza interativa de sua
relação, evitando-se a perspectiva de que um pólo
influencia linearmente o outro, ou simplesmente transfere algo de si ao outro.
As instâncias da “reciprocidade” (“os dois elementos são afetados pela situação
de relação”) e da “assimetria” (“os elementos não são afetados da mesma
forma”), são indicados por Zimmermann e Werner como chaves de leitura
fundamentais para a história cruzada. Além disso, tal como já observamos para o
caso das histórias interconectadas no item anterior, podemos considerar que os
“cruzamentos” (ou o gesto historiográfico de cruzar) podem se dar em vários
âmbitos diferenciados. Podemos fazer cruzamentos no momento de investigar ou
analisar as realidades em estudo; e podemos cruzar “os olhares e pontos de
vista que se voltam para o objeto”. Pode-se, por fim, conceber o cruzamento nos
termos de “relações entre o observador e o objeto, desencadeando assim uma
problemática da reflexividade” (Zimmermann e Werner, 2003, p. 97). Desta
maneira, o cruzamento pode aparecer no próprio objeto de estudo (um tema que se
presta essencialmente a isso ou um problema que é exatamente um cruzamento que
teve lugar em um processo histórico), como também pode aparecer ao nível das
operações historiográficas mais propriamente relacionadas ao âmbito da pesquisa
–seja no momento de delimitar o objeto de estudo, de investigá-lo, de
problematizá-lo ou de analisá-lo–. O cruzamento pode se configurar, ainda, nas
operações narrativas e textuais que se destinam a expor os resultados da
pesquisa sob a forma de um texto historiográfico específico que é oferecido ao
leitor.
Em síntese, de um lado o historiador pode
pesquisar cruzamentos; de outro pode narrar ou elaborar seu texto analítico
lançando mão de um estilo cruzado (o autor pode alternar cruzadamente
narrativas diversificadas, ou pode mesmo abrir espaço, em seu texto, para
várias vozes que se entrecruzam, mostrando diversos pontos de vista e
expressando-se consoante discursos distintos). São muitas as possibilidades, e
poderíamos pensar, nesse sentido, em diversas submodalidades
de “histórias cruzadas”, considerando ainda que estas diversas submodalidades podem se combinar, sob a regência do
historiador.
Zimmermann e Werner (2003) mencionam ainda uma
interessante possibilidade: o “cruzamento de escalas”. Como se sabe, a atenção
para as diferentes escalas de observação ou de análise que podem ser utilizadas
na operação historiográfica intensificou-se a partir das últimas décadas do
século xx, e em algumas
correntes historiográficas essa nova forma de consciência acerca do fazer
historiográfico apresenta-se como “um problema de escolha do nível de análise
pelo pesquisador” (p. 102). A Micro-História, ao
introduzir a micro-escala no campo de possibilidades
dos historiadores –no caso por uma bem definida
oposição às “macro-escalas” da historiografia
tradicional– constituiu a abordagem mais impactante entre as novas modalidades
historiográficas que rediscutiram o problema da escala na produção do
conhecimento histórico.
Com vistas ao seu objetivo de surpreender
grandes questões históricas através do micro-recorte
–ou, mais propriamente, da escala de observação reduzida– os micro-historiadores costumam tomar para fontes aquelas que
permitem uma análise densa, que revelam muitos dos detalhes que mais
habitualmente passam despercebidos da perspectiva macro-historiográfica
tradicional. Os processos criminais e inquisitoriais são exemplos de conjuntos
documentais que atraem frequentemente a atenção dos micro-historiadores
em vista da sua extraordinária riqueza de detalhes, das diversas vozes sociais
que são perceptíveis nesse tipo de fontes, do olhar em micro-perspectiva
com que o próprio investigador criminal ou o jurista costumam constituir essa
espécie de documentação em sua própria época. Retornando a estes textos que um
dia foram montados com o objetivo de investigar ou julgar seres humanos, os
historiadores os retomam tempos depois com o fito de perceberem processos
sociais, culturais e políticos que se revelam através de surpreendentes
detalhes e de descrições densas e meticulosas.
Ocorre que, se a Micro-História
trabalha com o “olhar micro”, e a macro-história
tradicional utiliza a tradicional escala ampliada, uma das possíveis submodalidades de histórias cruzadas organiza-se
precisamente em torno da possibilidade de “cruzar escalas”. Ao invés de fixar a
sua escala única –“micro” ou “macro”– a história cruzada investe na instigante
possibilidade de trabalhar essas duas escalas, ou outras, em um ir-e-vir que
pode se aplicar tanto ao trabalho de pesquisa como à exposição textual que é
ofertada ao leitor do trabalho final produzido pelo historiador. Busca-se bem
mais do que simplesmente alternar as escalas, considerando que este último caso
poderia se dar, mais propriamente, em um trabalho de natureza multiscópica que, em um capítulo, desenvolvesse uma análise
macro-historiográfica, e, em outro, elaborasse uma
análise micro-historiográfica. Com a história cruzada
de escalas, para muito além disto, trata-se de pensar nas possibilidades mais
inusitadas de entrelaçar escalas, contrapô-las, deixar que uma interaja sobre a
outra –por vezes explorando mesmo as sutis tensões que se estabelecem entre a
perspectiva que uma escala oferece e os aspectos que a outra escala permite ver
ou ocultar. O “cruzamento de escalas” constitui, desse modo, uma operação a
mais no repertório de possibilidades que se abre com a história cruzada.
Ademais, tal como pontuam Zimmermann e Werner em sua crítica às três
modalidades mais recentes que consideraram o “jogo de escalas” (micro-história, abordagem multiscópica,
e alltagsgeschichte),
estas parecem situar o problema das escalas apenas no âmbito de uma escolha
teórico-metodológica.
A proposta de Zimmermann e Werner é chamar
atenção também para “o problema da articulação empírica e do acoplamento de
diferentes escalas ao nível do próprio objeto”. As escalas, dessa maneira,
seriam “tanto um assunto de escolha intelectual, quanto induzidas pelas
situações concretas de ação próprias aos objetos estudados”. Certos objetos
empíricos, dizem os autores, “relevam de muitas escalas ao mesmo tempo e
escapam a abordagens de foco único”. Nestes casos, portanto, não se trata
apenas de uma escolha teórica ou metodológica, mas de uma demanda que diz
respeito ao próprio objeto de estudo, e que deve ser explorada adequadamente
pelo historiador que se aproxima de sua complexidade. Por vezes, o entremeado multiescalar é indissociável de certos problemas, como
parece ser o caso de boa parte dos estudos transnacionais, tal como sinalizam
Zimmermann e Werner (2003) ao chamarem atenção para a sua “inextrincável
imbricação”:
Em uma perspectiva de história cruzada, o transnacional não pode ser
simplesmente considerado como um nível suplementar de análise que viria
somar-se ao local, regional ou nacional, segundo uma lógica de mudança de foco.
Ele é, ao contrário, apreendido enquanto um nível que se constitui em interação
com os precedentes e que engendra lógicas próprias, com efeitos retroativos
sobre as outras lógicas de estruturação do espaço. Longe de se limitar a um
efeito de redução macroscópica, o estudo do transnacional faz aparecer uma rede
de interrelações dinâmicas, cujos componentes são em
parte definidos por meio dos vínculos que entretêm e das articulações que
estruturam suas posições (p. 102).
O gesto historiográfico do “cruzamento” –ou a
consciência de que esta operação deve fazer parte do fazer historiográfico–
parece ter conquistado o seu lugar epistemológico, enfim, no repertório de
operações disponíveis aos historiadores contemporâneos. Com relação ao texto de
Zimmermann e Werner –que às vezes passa da rica e meticulosa exposição
teórico-metodológica ao manifesto que opõe a sua prática historiográfica a
outras– podemos dizer que a história cruzada é de certo modo apresentada, pelos
autores, como forma historiográfica mais desenvolvida ou mesmo evolutiva em
relação à História Comparada e aos estudos de transferências. Isso porque os
autores parecem dar a entender que a história cruzada teria vindo para resolver
certos impasses e limitações expressas pelas duas outras modalidades, já que no
texto são contrapostos os gestos historiográficos do “cruzamento” ou da
“comparação”, com nítida crítica em relação ao último em decorrência da fixidez
que a comparação parece impor ao objeto, ou como resultado da sua pretensa
incapacidade –é o que dizem os autores– de perceber e dar a perceber as
mudanças (este seria o “ponto cego” da comparação).
É interessante registrar um aparte final em
relação às observações de Werner e Zimmermann. Em algum momento, parece ocorrer
uma mistura de critérios na exposição de Zimmermann e Werner. A História
Comparada e a história cruzada, de fato, podem ser consideradas como
designações que se referem aos procedimentos, no caso a “comparação” e o
“cruzamento”. Mas as “transferências” (ou os estudos de transferências)
referem-se na verdade ao objeto de análise do historiador. Se é o historiador
aquele que “compara”, e que “cruza”, não é ele quem “transfere”. Ele “analisa
transferências”, na verdade. Dito de outra maneira, as transferências são o seu
objeto nesta modalidade que tem sido situada sob o signo dos “estudos de
transferências”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise panorâmica das diversas modalidades
relacionais mais recentes na historiografia parece nos revelar um universo onde
ainda se disputam as designações. O futuro próximo pode levar a um rearranjo
nestas disputas, e talvez algumas das designações possam desaparecer ao serem
agrupadas a outras pela proximidade. Zimmermann e Werner, por exemplo, admitem
em certa passagem de seu artigo que “Cruzar é também entrecruzar, entrelaçar,
ou seja, cruzar diversas vezes”, não acenaria isso para a perspectiva que
história cruzada e histórias entrelaçadas estão muito próximas para
constituírem categorias em separado? Que rearranjos poderão ser demandados,
ainda, pelas histórias relacionais? Não há como saber isto ainda, pois ainda
vivemos um momento de afirmações emblemáticas sobre as novas possibilidades
relacionais e as modalidades que poderiam abrigá-las. De igual maneira, pôde se
perceber uma tendência à crítica da História Comparada tradicional pelas modalidades
relacionais emergentes.
De nossa parte, preferimos entrever como
operações que não necessariamente se excluem os diversos gestos
historiográficos surgidos a partir da emergência da família dos campos
históricos que se baseiam nos “procedimentos relacionais”, para retomar uma
expressão de Zimmermann. Neste sentido, “comparar”, “interconectar”, “cruzar”,
“entrelaçar”, analisar “transferências” com a devida atenção às
“reciprocidades” e “assimetrias” –estas e muitas outras operações devem fazer
parte do metier dos historiadores nos tempos
contemporâneos.8 Pensamos
também que, se a história comparada pode ser compreendida em um sentido mais
estrito, ela também pode ser evocada, pelo seu pioneirismo, como uma instância
mais ampla, na medida que o gesto de comparar abre-se, de certo modo, a
possibilidades diversas como o cruzamento e o entrelaçamento, ao lado da
comparação mais tradicional. Neste sentido, a História Comparada também poderia
ser evocada como uma família mais ampla que inclui diversos gêneros
historiográficos, tais como história cruzada, histórias entrelaçadas, histórias
interconectadas, histórias transnacionais, história global, além dos gêneros de
história comparada propriamente dita que se afirmaram desde a primeira metade
do século xx.
O emprego de uma expressão com duas acepções,
uma com um sentido mais abrangente (a história comparada como sentido mais
amplo), a qual englobaria outras especificidades, e outra com um sentido mais
restrito (a história comparada como uma modalidade mais específica dentro deste
circuito mais amplo), é análogo a outras situações. Por exemplo, não é raro o
uso da expressão história social com um sentido mais amplo, que abrangeria
diversas modalidades como as histórias cultural, econômica, política, etc., e um
sentido mais restrito, que define uma “história social” que estuda grupos
sociais, movimentos sociais e fenômenos mais específicos. Da mesma forma,
utiliza-se muito a palavra Interdisciplinaridade, em sentido mais amplo, como
um campo atento às trocas de diversos tipos entre os campos de saber, e a
interdisciplinaridade em sentido estricto, alinhada à
transdisciplinaridade, multidisciplinaridade, etc.
Pode ser que a comunidade historiadora, tenda, no futuro, a conservar as duas
designações.
Por outro lado, o uso de uma expressão que
vimos neste texto –os “procedimentos relacionais”, os quais abrangeriam os
gestos da comparação, do cruzamento, da interconexão, do compartilhamento, e da
leitura transnacional– poderia ser empregado no futuro para definir a modalidade
mais ampla, deixando-se a designação história comparada apenas para se referir
à modalidade que se centra no gesto comparativo. As designações, na verdade,
ainda estão sendo disputadas, pois algumas das modalidades que examinamos neste
artigo são relativamente recentes, contando com menos de vinte anos de fortuna
crítica. Pode se dar que algumas destas designações desapareçam em favor de
uma, como por exemplo a história cruzada e as histórias entrelaçadas. Mas este
é um movimento que ainda surgirá de demandas da comunidade historiadora. De
todo modo, tal como sugerimos neste artigo, os gestos de comparar, cruzar,
interconectar, entrelaçar, não são excludentes, constituindo todos
procedimentos relacionais que podem ser viabilizados pelos historiadores. Tal
como uma análise historiográfica pode alternar, em sessões distintas de um
mesmo trabalho, as abordagens macro-historiográfica e
micro-historiográfica, com menos dificuldade ainda
podemos pensar as alternâncias entre os gestos relacionais. Por fim, não há
como negar que certos problemas mais amplos que motivaram o surgimento das
diversas modalidades que abordamos neste artigo –história comparada, histórias
cruzadas, histórias interconectadas, história transnacionais, etc.– definem um
terreno comum de preocupações que podem assegurar um diálogo entre os diversos
campos historiográficos que tem se constituído em torno dos procedimentos
relacionais. A crítica ao tratamento necessariamente
centrado em categorias como o nacionalismo ou a região administrativa, por
exemplo, podem traspassar os diversos campos, inclusive a história comparada. A
possibilidade de tratar com maior criatividade e ousadia os recortes de tempo e
espaço também não pode ser evocada com exclusividade por nenhuma das
modalidades relacionais. O mesmo se pode dizer da experimentação de novos
modelos de escrita historiográfica, incluindo a inspiração em campos de
expressão como o cinema e a literatura moderna. De igual maneira, a crítica
mais severa a um certo setor da história comparada, o qual não teria cumprido o
seu programa crítico em relação a categorias e práticas típicos da
historiografia tradicional, pode e tem sido encaminhado não apenas pelas
modalidades relacionais mais recentes, mas mesmo por setores mais críticos da
própria História Comparada. Não se apresenta aqui um ponto de necessária
dissonância, ainda que –tal como é comum por ocasião do surgimento e
consolidação inicial de novas propostas e modalidades historiográficas– tenha
havido uma ênfase maior dos manifestos fundadores das modalidades recentes na
crítica mais radical àquela que foi pioneira entre os campos historiográficos
relacionais. As próximas décadas talvez tragam maiores adequações.
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1 Para uma discussão sobre o conceito
de história atlântica, ver Baylin (2005), e Games
(2006, pp. 741-75). Para temáticas variadas sobre o
Atlântico na História Global, ver Seeman, e Canizares-Esguerra (2007).
2 As histórias de fronteiras têm se
multiplicado nos EUA nas últimas décadas. Ver Weber (2000, pp. 5-1); Johnson
(2002, pp. 259-271) e Citino (2001, pp. 677-693).
3 Esta posição se aproxima à de
Tyrrell (1999), que assinala certo fracasso da História Comparada em
efetivamente ter “transcendido os limites da historiografia nacionalista”
(p. 1033).
4 Entre os historiadores que têm
adotado a designação de “connected histories” há
muitos voltados para os estudos sobre América Latina, África, Ásia. Para os
dois últimos casos, ver Goscha e Ostermann
(2009); Hanifi (2011); Levi (2003, pp. 281-299).
5 Histoire croisée, em francês, ou a modalidade que
tende a ser traduzida por Entangled history, em inglês (palavra
que, em sentido mais rigoroso, refere-se a “emaranhado”, mais do que a
“cruzamento”).
6 As relações entre transferência
cultural e História Comparada mereceram um artigo específico de Mathias Middell (2000, p. 7-41). Um nome importante dos estudos de
transferências é o de Michel Espagne (n. 1952).
7 Em “Histórias Cruzadas, Mundos
Cruzados”, Gould (2007, p. 766) admite a designação histórias conectadas, ao
lado de histórias cruzadas, para o estudo das interações entre o Império
Britânico e o Império Espanhol.
8 Essa também parece ser a perspectiva
de Roumen Daskalov e Tchavdar Marinov (2013) ao
organizar o livro História Cruzada dos Bálcãs.
Ainda que incorporando a designação “Entangled History of Balkans”,
os autores buscam tratar a história moderna dos Bálcãs a partir de uma
perspectiva simultaneamente transnacional e relacional que combina de formas
diversas as histórias compartilhadas, interconectadas, cruzadas, sem esquecer
as perspectivas da transferência e de outros tipos de cruzamentos.