Histórias interconectadas, histórias cruzadas, abordagens transnacionais e outras histórias

Historias interconectadas, historias cruzadas, enfoques transnacionales y otras historias

Interconnected Stories, Crossed Histories, Transnational Approaches and other Histories

 

José D’Assunção Barros

0000-0002-3974-0263

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

jose.d.assun@globomail.com

 

Resumo: Este artigo objetiva discutir as mais recentes modalidades historiográficas que, ao lado da História Comparada, defendem a proposta de lidar com ‘procedimentos relacionais’ –aqui entendidos como aqueles que se encaminham para além das tradicionais abordagens historiográficas e atentam para os gestos historiográficos da comparação, cruzamento, interconexão e ultrapassagem dos limites nacionais e civilizacionais na escolha dos objetos historiográficos. A história transnacional, as histórias interconectadas, as histórias cruzadas, entre outras, são apresentadas em suas singularidades, através das perspectivas dos autores que utilizam estas designações para os seus próprios trabalhos. O artigo considera que os procedimentos relacionais podem se referir à definição do objeto de pesquisa, modos narrativos, procedimentos analíticos, cruzamento sistemático de fontes e outros aspectos da operação historiográfica. Como método para trabalhar a discussão historiográfica, recorre-se à comparação entre textos representativos destas correntes, tomados como fontes para análise historiográfica.

Palavras-Chave: histórias interconectadas; histórias cruzadas; histórias transnacionais; História Comparada; procedimentos relacionais.

 

Resumen: El objetivo de este artículo es discutir las más recientes modalidades historiográficas que, al lado de la Historia Comparada, defienden la propuesta de lidiar conprocedimientos relacionales” –aquí entendidos como aquellos que se encaminan más allá de los tradicionales abordajes historiográficos y atentan para los gestos historiográficos de la comparación, cruzamiento, interconexión y superación de los límites nacionales y civilizacionales en la elección de los objetos historiográficos. La historia transnacional, las historias interconectadas, las historias cruzadas, entre otras, se presentan en sus singularidades, a través de las perspectivas de los autores que utilizan estas designaciones para sus propios trabajos. El artículo considera que los procedimientos relacionales pueden referirse a la definición del objeto de investigación, modos narrativos, procedimientos analíticos, cruzamiento sistemático de fuentes y otros aspectos de la operación historiográfica. Como método para trabajar la discusión historiográfica, se recurre a la comparación entre textos representativos de estas corrientes, tomados como fuentes para análisis historiográfico.

Palabras clave: historias interconectadas; historias cruzadas; historias transnacionales; Historia Comparada; procedimientos relacionales.

 

Abstract: The purpose of this article is to discuss the most recent historiographical modalities which, together with Comparative History, defend the aim of dealing with “relational procedures” –understood here as those that go beyond traditional historiographical approaches and use the historiographical methods of comparison, crossing, interconnection and transcending national and civilizational borders in the choice of historiographical objects. Transnational history, interconnected histories, and crossed histories, among others, are presented in their singularities, through the perspectives of the authors who use these designations for their own works. The article considers that relational procedures can refer to the definition of the research object, narrative modes, analytical procedures, the systematic crossing of sources and other aspects of the historiographical operation. In order to work on the historiographical discussion, we compared representative texts of these trends, used as sources for historiographical analysis.

Key words: interconnected stories; crossed histories; transnational stories; Comparative History; relational procedures.

 

Recebido: 24 de julho de 2017 Aceito: 30 de janeiro de 2018

 

 

As últimas décadas do século xx, e a passagem para o novo milênio, têm coroado com novas motivações o já secular desenvolvimento da História Comparada, e de outras modalidades historiográficas emergentes que lidam, de uma forma ou de outra, com “procedimentos relacionais”. Contextos como o das crescentes experiências de associações econômicas, culturais e políticas entre países diversos, na América Latina, na África, ou na Europa, têm oferecido um ambiente bastante favorável para o desenvolvimento de abordagens transnacionais da história. A formação da União Europeia, que se consolida em 1993 com o tratado de Maastricht, e a fundação da União Africana em 2002, constituem apenas dois dos exemplos de associações transnacionais que demandam a necessidade de modalidades historiográficas globalizadoras, superando os antigos limites nacionais na direção com a qual sonhava Marc Bloch no primeiro pós-guerra. Afinal, se o mundo começa a ser repensado nos termos de grupos maiores de países, constituintes de conjuntos formadores de novas identidades, é oportuno que os historiadores ofereçam alternativas historiográficas voltadas para estas novas identidades transnacionais.

Ao mesmo tempo, ainda no interior das unidades nacionais, ou entre elas mas sem implicar necessariamente na perspectiva transnacional, surgiram as proposições de outros gestos relacionais para além da comparação: interconexão, cruzamento, entrelaçamento de histórias, de narrativas, de âmbitos de análise e de escalas de observação têm se afirmado com especial vigor a partir de novas propostas e modalidades historiográficas. Chamaremos a estes novos gestos que se juntam aos procedimentos da “comparação”, e que confrontam os fazeres historiográficos mais tradicionais, de “procedimentos relacionais”, aqui utilizando uma expressão que encontramos pela primeira vez em Zimmermann e Werner (2003, p. 90). Neste artigo, examinaremos as modalidades mais recentes que, ao lado da História Comparada, podem ser abrigadas sob o signo de uma história relacional.

 

HISTÓRIA GLOBAL, “HISTÓRIAS TRANSNACIONAIS” E OUTRAS POSSIBILIDADES

As demandas por uma historiografia que sintonize com as necessidades planetárias, e a necessidade de repensar os limites do nacionalismo mais uma vez –tal como fizera Marc Bloch no período das guerras mundiais– levou alguns historiadores a questionar a eficiência da própria História Comparada no seu já antigo projeto de superar os limites da perspectiva nacionalista. Afinal, haviam se passado décadas, e muitos não viam resultados mais impactantes –e capazes efetivamente de redefinir as sensibilidades historiográficas correntes– na produção concreta dos historiadores comparatistas. Teria a História Comparada falhado em seu projeto inicial, e apenas redesenhado de uma nova maneira a história baseada nas cores nacionalistas? Se a resposta for positiva, como retomar mais seriamente esse projeto perdido? Autores como Gruzinski quase parecem acusar a História Comparada de ter dado uma volta sobre si mesma, e de ter se reconduzido aos parâmetros da historiografia tradicional:

A seleção dos objetos que têm de ser comparados, dos quadros e dos critérios, as perguntas, os mesmos modelos de interpretação, continuam sendo tributárias de filosofias ou de teorias da história que muitas vezes já contêm as respostas às questões do pesquisador. No pior dos casos, a história comparada pode aparecer como um ressurgimento insidioso do etnocentrismo (Gruzinski, 2001, pp. 175).

Em nossa opinião, a História Comparada foi um projeto que deu certo. Precisa, naturalmente, dos seus permanentes reajustes. “Comparar” não é uma operação simples. Não liberta automaticamente os historiadores das categorias e formas estereotipadas de pensamento que os amarram, das pressões que sobre eles se exercem. De fato, é possível elaborar uma História Comparada muito próxima à historiografia contra a qual ela mesma se insurgiu nos seus primórdios. Todavia, é igualmente viável desenvolver uma História Comparada crítica, moderna, atualizada, sintonizada com novas metodologias e perspectivas conceituais. Novos caminhos, desse modo, têm surgido na família derivada das histórias comparadas. Os olhares e recursos comparatistas se aprimoram. Novas atitudes e possibilidades entram em cena. Jürgen Kocka, um dos teóricos que mais têm refletido sobre os benefícios da História Comparada para esta nova etapa da historiografia, chama atenção para a conexão da abordagem comparativa com correntes diversas de um novo campo que já vai sendo denominado história global ou história mundial:

Há, afortunadamente, muito interesse nos dias de hoje com relação às abordagens transnacionais para a História. As diferentes correntes de História Global ou História Mundial são um exemplo disso. Abordagens comparativas, comparações internacionais e interculturais, são apenas uma forma de perceber o crescente compromisso trans-nacional. Há outras formas, por exemplo, de estudos e interpretações usando teorias pós-coloniais (Kocka, 2003, p. 41).

A história global não é motivada apenas pela necessidade de repensar o mundo a partir destas unidades identitárias maiores que se tornaram realidades bem presentes nos novos cenários políticos e econômicos do planeta. Os novos desenvolvimentos globais, tal como assinalam Kocka e outros autores, favorecem de fato o afloramento de alternativas historiográficas que têm buscado romper com o padrão unilinear de observação baseado exclusivamente no ponto de vista eurocêntrico, ou, por extensão, amparados no ponto de vista do Ocidente (Europa e Américas, mas mais especificamente a Europa e a América do Norte). Ao contrário da tradicional historiografia eurocêntrica
–esta que começa por construir uma história a partir da Europa, daí irradiando para o resto do mundo, ou então ajustando dentro desta história eurocêntrica a história das sociedades não-europeias ou não-ocidentais– a história global procura precisamente recuperar os demais pontos de vista, não eurocêntricos, não-ocidentais, não-colonialistas.

A perspectiva da história global é apreender os múltiplos pontos de vista, e depois interconectá-los, mas sem submetê-los a uma lógica única, tal como ocorre com uma das perspectivas da história tradicional. Em uma palavra, trata-se de construir uma história sem um centro único. A história global, neste caso, não é nem pensada como um agregado desconectado de histórias nacionais, e nem é tratada como uma história universal que tenta submeter todas as histórias a uma caminhada única da civilização, à maneira das antigas histórias universais que têm seus primórdios na Filosofia da História, de Hegel, e que, embora se modificando com a historiografia ocidental científica, veio a se desdobrar nas histórias universais que, mesmo nos nossos dias, continuam unilineares. Pensar o mundo a partir destes novos padrões de interconexão conduz quase naturalmente ao reconhecimento da importância da abordagem comparativa. É importante também ressaltar que o olhar comparado deve ser estendido não apenas para os processos históricos, mas também para as práticas historiográficas. Em seu livro O que é a História Global, Crossley (2015), procura mostrar a existência de diversas estratégias narrativas utilizadas por historiadores de várias culturas, e procura agregar este reconhecimento de que não existe um único padrão de fazer historiografia ao seu esforço que definir e de trabalhar com esta nova modalidade que seria a da história global –uma história que já não tem um centro, como propunha a antiga perspectiva da historiografia eurocêntrica. A perspectiva dos novos historiadores que têm contribuído para a constituição do novo campo da história global implica na necessidade de atentar não apenas para a História Comparada, mas também para o que poderíamos entender como uma historiografia comparada.

Para uma melhor compreensão das novas modalidades que têm surgido com vistas à transposição dos tradicionais limites nacionais ou regionais –e que, por assim dizer, alcançam o mundo de uma nova maneira– será oportuno discutir os campos históricos que começam a ficar conhecidos como histórias interconectadas, histórias cruzadas e histórias transnacionais. Estas definições ainda estão emergindo no seio do já vasto universo das designações de modalidades históricas, de modo que, por vezes, ainda apresentam certa ambiguidade quando confrontadas com a História Comparada, um campo bem mais definido e que lida com recortes mais precisos, embora múltiplos. Com a história interconectada, pode-se dizer que o historiador escolhe conduzir-se criativamente pelo seu tema, o qual –além de eventualmente ser capaz de levar à transcendência das tradicionais fronteiras nacionais ou regionais– pode se deslocar através de diferentes grupos sociais, identidades étnicas, definições de gênero, minorias, classes ou categorias profissionais. Certos temas prestam-se a este livre fluir historiográfico –a este surfar através das ondas de um mar no qual parecem ter se dissolvido todos os recortes tradicionais.

As trocas culturais, no mundo midiatizado e globalizado, oferecem, por exemplo, um vasto leque de possibilidades de estudo às “histórias transnacionais”. Sobre esta modalidade, a historiadora Micol Seigel (2005) assinala que a história transnacional “examina unidades que transbordam e vazam [infiltram-se] através de fronteiras nacionais, unidades que podem ser tanto maiores como menores do que o Estado-Nação” (pp. 62-90). Tampouco a história transnacional deve ser confundida com a história global, embora nada impeça a conexão entre as duas modalidades. Seigel tende a enxergar a história global nos termos de um recorte (um espaço de observação) e a história transnacional nos termos de uma abordagem, de uma atitude historiográfica. Os historiadores globais, diz-nos ela, uma vez definido seu campo de interesses, têm diante de si a possibilidade de escolha entre a perspectiva transnacional e a perspectiva já tradicional da história internacional: “A História Transnacional não se propõe simplesmente a recobrir um maior espaço; não é equivale à História Mundial –já que os historiadores mundiais [globais], tal como todo mundo mais, precisam ainda escolher entre as abordagens transnacional ou internacional” (Seigel, 2005, p. 63).

Ao mesmo tempo, os objetos da história transnacional não se estendem necessariamente para o espaço ampliado que se torna típico da história global. Assim, ainda que os historiadores globais –assim definidos pelos seus objetos de estudo e territórios de observação historiográfica– possam optar pela abordagem da história transnacional em desfavor da abordagem da História Internacional, há historiadores transnacionais cujo estudo pode perfeitamente se conformar em um território historiográfico situado entre limites nacionais, desde que o problema por eles examinados o levem a avaliar a interação entre o local e o global (os reflexos do global no local, por exemplo, ou mesmo o contrário.

A história transnacional, deste modo, não se liga a uma aversão ao nacional. Seu desafio, sim, é enfrentar não o “nacional”, mas a noção arraigada de que o “nacional” (ou um mundo dividido em nações como unidade de análise) deve ser a categoria predominante. Para a perspectiva transnacional de Micol Seigel, a nação se apresenta como fenômeno social que se situa ao lado de uma série de outros, mais do que o quadro de estudos por si mesmo. Ou seja, a nação pode ser perfeitamente estudada em uma perspectiva transnacional, e estudos transnacionais podem se apresentar no interior de fronteiras nacionais. O que não pode ocorrer, para se ter uma perspectiva transnacional, é que a categoria da “nação” se apresente como a categoria central que conduz o pensamento historiográfico. A nação é algo a ser estudado; não é o quadro que emoldura o estudo como uma categoria a-histórica e incontornável.

Deborah Cohen (2004), por sua vez, acrescenta um elemento importante em sua busca de apreensão deste novo campo de possibilidades que seria o da história transnacional, situando-o particularmente em confronto com o próprio campo da História Comparada. Segundo ela, enquanto a história comparada “ocupa-se fundamentalmente das diferenças e semelhanças” e frequentemente de ‘questões de causalidade’, já as histórias transnacionais, em franco contraste com relação a esses aspectos, “podem nos falar sobre circulação transnacional, história das trocas culturais, fenômenos internacionais” (Cohen, 2004, p. 24). Não se trata mais, com as histórias transnacionais, e também com as histórias interconectadas e as histórias cruzadas, de meramente delimitar um certo número de recortes bem definidos, o que tem sido a operação central e a base de apoio das correntes da História Comparada que já vão se consolidando na sua forma mais tradicional. Pode-se mesmo dizer que há temáticas contemporâneas que já não se prestam a tais recortes. As redes sociais, por exemplo, os transcendem; as nacionalidades continuam a existir aqui como fenômenos de identidade, marcadores dos usuários, elementos instituidores de exclusão ou inclusão, mas o ambiente virtual já não conhece fronteiras, a não ser, eventualmente, a língua. O não-lugar instituído pela rede mundial de computadores através das redes sociais é apenas um exemplo. O mundo contemporâneo conhece também a formação de identidades diversas, que já não se definem nacionalmente. De igual maneira, a recepção de determinado produto –concreto ou virtual– atende a padrões de circulação que se perderiam se o historiador decidisse limitar o seu estudo a determinadas populações nacionalmente localizadas, regionalmente definidas em termos de uma visibilidade tradicional do espaço. O cinema estende sua complexa malha para além dos seus sistemas localizados de produção. A música possibilita formas de deslocamento diversas. Determinados circuitos constituídos necessariamente pela própria circularidade transnacional, inclusive para períodos mais recuados, rejeitam francamente a possibilidade de observância dos habituais recortes nacionais. É o caso da história atlântica –esse domínio temático que implica um universo circular e intercontinental por definição–1 ou também dos estudos das “borderlands” (fronteiras),2 que inserem necessariamente o historiador em um complexo território de ambigüidades. A história da diáspora negra, da mesma forma, implica a transnacionalidade.

Ao lado da história transnacional, vale lembrar ainda que tanto este campo histórico como o das histórias cruzadas ou o das histórias entrelaçadas –dois outros domínios que já examinaremos– pressupõem possibilidades de mudanças no próprio estilo historiográfico (isto é, na maneira de escrever ou de expor os resultados da pesquisa). Possivelmente, essas e outras novas modalidades historiográficas têm muito a aprender com o romance moderno, com o cinema e com outras práticas no que se refere aos novos modos de conduzir narrativas e as análises entrelaçadas. Elas também clamam por um novo padrão de leitura. As cartas estão colocadas, e o caleidoscópio historiográfico dá sinais de se movimentar mais uma vez. Se essas novas modalidades constituem um campo novo e diferenciado em relação à História Comparada –ou mesmo um espaço teórico-metodológico divergente em relação aos aportes comparatistas– esta é ainda uma discussão em curso. Micol Seigel, em seu artigo “Além da Comparação”, argumenta que a história transnacional está em campo divergente em relação à História Comparada. Refere-se, inclusive, a uma “virada transnacional” definidora de novos caminhos (Seigel, 2005, p. 62).3

Por outro lado, se ampliarmos o sentido de comparação –ou se ao menos lidarmos com um sentido mais estrito para o comparativismo mais tradicional, que fixa de maneira mais rígida os recortes a serem dispostos em comparação, e com um sentido mais amplo, que considera a comparação como signo de uma família maior de “procedimentos relacionais”– poderemos pensar em uma família mais extensa de modalidades históricas que rompe com os recortes monocentrados da historiografia. A História Comparada, no sentido mais amplo de “história relacional”, representaria neste caso uma família de modalidades historiográficas que visam libertar o historiador dos limites impostos pela obsessão da continuidade espacial e pelas ilusões de isolamento geopolítico, entre outras travas que comprimem o habitual olhar historiográfico.

De nossa parte, acreditamos que é mais rico agrupar as modalidades relacionais do que investir na fragmentação desta família de campos historiográficos. Os procedimentos relacionais –comparatismo, interconexão, entrelaçamento, cruzamento, apreensão de dinâmicas transnacionais– podem encontrar abrigo nas linhas de pesquisa de laboratórios e associações de historiadores preocupados em não se deixar imobilizar pela rigidez dos recortes historiográficos tradicionais. Esses procedimentos relacionais, além do mais, podem se combinar, e não são necessariamente excludentes uns em relação aos outros.

 

HISTÓRIAS INTERCONECTADAS

É difícil prever quais das novas designações que têm surgido no cenário historiográfico –história global, história transnacional, histórias interconectadas, histórias cruzadas, entre outras– serão assimiladas efetivamente pelo vocabulário historiográfico com o qual passarão a lidar as futuras gerações de historiadores. As expressões podem desaparecer ou recuar do cenário principal tão rapidamente como surgiram. Algumas se consolidarão. Outras passarão para a história da historiografia. Quais, entre as designações de novas modalidades, permanecerão no futuro vocabulário dos historiógrafos?

O gesto relacional que agora examinaremos é o da “interconexão”. De certa maneira, pode-se dizer que a prática das histórias interconectadas envolve a possibilidade de religar experiências diversas de uma nova maneira, renovando o esforço que já havia sido realizado pela História Comparada mais tradicional no sentido de pensar novas possibilidades de recortes. A imagem de interconexão, por outro lado, remete tanto a possibilidades narrativas como a possíveis pontos problemáticos de conexão, sem mencionar que algumas realidades historiográficas complexas, como a dos grandes impérios que abarcam dentro de si mundos culturais diversos, parecem convidar ao estabelecimento de conexões com vistas a uma apreensão mais plena da realidade examinada. Nas histórias interconectadas, as histórias devem se encadear de algum modo.

A expressão inglesa “connected histories” –que para o Português adaptaremos como “histórias interconectadas”– foi criada pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, estudioso do império português no período moderno. Segundo sua perspectiva, a história –ou “as” histórias– só podem ser, rigorosamente falando, múltiplas e diversificadas (ainda que interconectadas), e não constituem em absoluto uma única e grande história, homogênea, linear, conduzida em uma única direção. Gruzinski (2001) assim descreve esse novo campo de possibilidades no que se refere às demandas que o geraram:

Diante de realidades que convém estudar a partir de múltiplas escalas, o historiador tem de se converter em uma espécie de eletricista encarregado de restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais que as historiografias nacionais desligaram ou esconderam, bloqueando as suas respectivas fronteiras. As que dividem Portugal e Espanha são típicas: várias gerações de historiadores escavaram entre os dois países fossos tão profundos, que hoje é preciso muito esforço para entender a história comum a estes dois países e impérios (pp. 176-177).

As histórias conectadas, ou “histórias interconectadas”, surgiram neste mesmo grande movimento que se tem construído em torno da sugestão de favorecer a ultrapassagem das fronteiras historiográficas artificiais. Não constituem necessariamente “histórias transnacionais”, embora frequentemente também o sejam, no sentido de que o historiador é quem define o que estará “conectando”. Por outro lado, certos objetos e problemas históricos, em decorrência de suas próprias características, quase demandam a combinação entre histórias conectadas e história transnacional. Entrementes, as balizas nacionalistas, categorias nacionais de hoje e direcionamentos estereotipados parecem pesar de tal modo sobre a prática historiográfica que, mesmo diante da demanda de uma realidade histórica já multidiversificada por si mesma, historiadores tendem a recuar para os limites tradicionais que mantém correspondências com o imaginário nacionalista ou com recortes político-administrativos mais habituais. É o que nos diz Gruzinski (2001) ao comentar os estudos sobre a monarquia católica do início do período moderno:

Enquanto os historiadores costumam preocupar-se em inventar e construir novos objetos definindo territórios e cronologias, a Monarquia católica forma uma realidade preexistente no espaço e no tempo. Essa preexistência não significa que os historiadores tenham espontaneamente adotado o território do império como campo de observação. Muitas vezes, esta realidade gigantesca, bastante heterogênea e fragmentada para se deixar facilmente estudar, foi escamoteada nas abordagens hispanocêntricas. O livro recente de Geoffrey Parker, The World is not enough. The Grand stategy of Philip II, apesar do seu título e das suas ambições, contém poucas coisas sobre as dimensões africanas, asiáticas e americanas da monarquia. Acontece o mesmo com abordagens italianas que não tomam em conta as Américas ibéricas, Portugal e Ásia nas suas reflexões sobre o ‘sistema imperial (p. 179).

Desta forma, mesmo diante dos objetos que expõem uma enorme riqueza de possibilidades já ao primeiro olhar, muitos historiadores deixam-se conduzir pelos caminhos em pontilhado que tantos já percorreram, sempre os mesmos, deixando que se percam possibilidades de pesquisa e de tratamentos historiográficos fora da linearidade habitual. As histórias interconectadas, assim como outras similares, requerem acima de tudo um rompimento em relação aos padrões historiográficos que costumam orientar as escolhas temáticas habituais, às quais uma boa parte da historiografia já se acostumou de modo demasiado rígido. Liberar o olhar historiográfico parece ser a sua pré-condição.

As “histórias interconectadas” parecem tender as serem assumidas como designação mais relacionada aos novos centros emergentes de produção do saber historiográfico –e não é à toa que a expressão surgiu na obra de um historiador indiano. Não obstante, Serge Gruzinski, pesquisador interessado em realidades culturalmente multidiversificadas como a do México antigo ou a do império português/hispânico, também assume essa mesma designação para alguns de seus trabalhos. O trabalho de Gruzinski sobre o Império Hispânico-Português talvez pudesse se associar ainda com maior eficácia à designação das “histórias entrelaçadas”, se considerarmos que o universo histórico por ele estudado abarca toda uma diversidade de realidades culturais e civilizacionais que passaram a se entrelaçar sob a orquestração dessa unidade política de extensões planetárias que foi a da União Ibérica. De todo modo, a possibilidade de transitar menos ou mais livremente entre as designações apenas atesta a íntima proximidade dessas perspectivas de estudos.

Enquanto as “histórias interconectadas” têm se afirmado preferencialmente como designação historiográfica nos meios não-europeus de produção do saber histórico, ou ao menos são encaminhadas por historiadores de qualquer parte que estão particularmente interessados nos contextos não-europeus como objetos de estudo,4 a história cruzada parece estar afirmando a sua base a partir de um grupo francês ligado à ehess, em Paris. Por outro lado, também alguns historiadores britânicos e americanos, particularmente os interessados na história atlântica, têm disputado a designação. Para fechar o circuito, podemos lembrar que as já discutidas “histórias transnacionais” apresentam uma grande recorrência, entre seus praticantes, de historiadores americanos. Existe, conforme se pode entrever, uma certa disputa e oposição de designações que nem sempre se refere mais rigorosamente a questões historiográficas específicas, e sim à sua inserção em certos centros ou laboratórios de pesquisa.

Ilustraremos a modalidade de “histórias interconectadas” com o belo livro que Peter Linebaugh e Marcus Rediker (2008) intitularam A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. Através de histórias diversas –construídas a partir de uma surpreendente “vista de baixo” que revela uma face até então inédita nos estudos da formação do capitalismo seiscentista e setecentista– os autores conseguem criar uma grande interconexão que é precisamente a resistência oculta a esse processo global. Trata-se recuperar “centelhas perdidas”, para retomar uma célebre expressão de Walter Benjamin (2008) em suas Teses sobre o conceito de História [1940], ou de instituir uma forma visibilidade que a historiografia oficial negou aos motins de marinheiros insubordinados, aos náufragos lançados ao mar pelas aventuras colonizadoras, às conspirações portuárias, às revoltas e rebeldias de escravos, às resistências cotidianas dos proletários ingleses de ambos os lados do atlântico ou à formação de redes atlânticas de pirataria que configuravam um sistema paralelo de poder e sociabilidades, sem deixar de lembrar os grupos radicais da revolução inglesa.

Na obra de Linebaugh e Rediker, o Atlântico Norte –esse mar concreto, imaginário, fornecedor de riquezas ou de naufrágios, mediador do degredo ou do comércio, percebido do porto ou de dentro dos navios, observado do ponto de vista de uma liberdade oprimida ou de uma escravidão imposta– é o grande elo de ligação. O mar é o personagem que estende seu manto por sobre todas as histórias que, aqui, encontram interconexão através de uma densa análise apoiada em uma diversificada documentação. Este grande espaço fluído que une o mar e as zonas portuárias e litorâneas trianguladas pela Europa, África e Caribe –pontos nodais de um sistema comercial muito específico– é o que oferece, a essas histórias interconectadas, o seu ambiente, seu cenário, seu meta-enredo, sua possibilidade de se abrigarem sob uma circularidade de modos de resistência e práticas revolucionárias.

O inusitado título do livro estabelece um novo liame. A “Hidra de Lerna” era um monstro pantanoso de diversas cabeças –o qual, na mitologia grega, Hércules havia enfrentado no segundo dos seus doze trabalhos. A Hidra de Lerna parecia invencível até ser enfrentada por Hércules. Cortada uma das suas nove cabeças de serpentes, renascia outra. Os autores utilizam a metáfora para mostrar o constante reaflorar das resistências ao capitalismo global e às suas opressões e imposições no período considerado, através das mais diversas formas e dando vida a histórias diversas. A imagem foi extraída de um lugar comum muito presente na linguagem das próprias classes dominantes e governantes que –com um misto de desprezo, receio e impiedoso rigor– submetiam aqueles que resistiam às margens do capitalismo em formação:

Os governantes usaram o mito de Hércules e da hidra para descrever a dificuldade de impor a ordem em sistemas de trabalho cada vez mais globais, apontando aleatoriamente plebeus esbulhados, delinquentes deportados, serviçais contratados, extremistas religiosos, piratas, operários urbanos, soldados, marinheiros e escravos africanos como as cabeças numerosas e sempre cambiáveis do monstro (Linebaugh e Rediker, 2008, p.12).

O terceiro liame entre as histórias interconectadas que foram unidas pelo livro de Linebaugh e Rediker é conceitual. Os autores estabelecem uma unidade analítica através do conceito de “proletariado atlântico”, uma categoria translocal, transfuncional e interétnica que abrange grupos sociais tão diversificados como os marinheiros em geral, os camponeses ingleses expropriados que passam a ser absorvidos pelo capitalismo urbano, os africanos escravizados e traficados, e os nativos americanos incorporados ao sistema através de outros tipos de trabalho compulsório. A unidade conceitual através de uma análise que abrange diversos tipos de trabalho, mas que os integra em uma única categoria narrativa, é o contraponto da unidade conceitual que une os diversos tipos de personagens através do conceito de “Atlântico revolucionário”. O fio conceitual é o terceiro elemento da trama que une as histórias interconectadas apresentadas por Linebaugh e Rediker.

É importante ressaltar que as histórias trazidas a primeiro plano por Linebaugh e Rediker são interconectadas sob uma perspectiva efetivamente transnacional. Através do Mar e do circuito triangular que une Europa, África e América, as experiências circulam e interagem com os diversos grupos envolvidos de cada lado do Atlântico, constituindo um poderoso fator que move, influencia e refaz a história dos diversos grupos sociais que constituem essa grande e diversificada população que os autores chamaram de “proletariado atlântico”. Podemos dizer que, deste modo, unem-se aqui as modalidades que podem ser definidas como “histórias interconectadas” e “histórias transnacionais”.

É também uma proposta de histórias interconectadas, igualmente em conexão com uma perspectiva transnacional –mas agora trazendo ao âmbito comparativo-relacional as unidades nacionais mais amplas que podem ser apreendidas por uma perspectiva macro-histórica– o que temos com “Connected Histories: Notes towards a Reconiguration of Early Modern Eurasia” de Sanjay Subrahmanyam (1997, pp. 735-762). O próprio autor –em sua intenção de iluminar uma compreensão do Japão moderno a partir de uma perspectiva que aborda também outros países asiáticos– situa seu artigo como uma resposta indireta a outro texto, no qual Lieberman (1991) compara seis experiências euro-asiáticas: Burma, Sião, Vietnam, França, Rússia e Japão (pp. 1-31). Estudos como estes –de um e outro autor– mostram que, ainda que o ponto de partida ou motivação central seja compreender um processo histórico em certo país, a perspectiva transnacional ou interconectante pode ser alcançada ampliando o universo de observação com vistas a incorporar a análise de outras sociedades ou unidades políticas. Por vezes, esta ampliação de universos de observação é mesmo fundamental para corrigir distorções. Não é por acaso que Subrahmanyam (1997, p. 735) –em seu artigo sobre a conexão do Japão com outros países asiáticos– toma para epígrafe uma passagem em que Tanaka Yuko (1995) identifica a tendência do imaginário japonês moderno a minimizar as conexões com os demais países asiáticos, ao mesmo tempo em que valorizm as interconexões com o ocidente:

A maioria dos japoneses, mesmo hoje, costumam acreditar que o universo político-cultural do período Edo foi fundamentalmente determinado pelo fechamento do país. Também tendem a considerar que a abertura do Japão pode ser reduzida ao desenvolvimento dos intercâmbios com o Ocidente, após o surgimento do regime Meiji. É difícil, para os japoneses de hoje, imaginar que o Japão se desenvolveu em relação com outros países asiáticos, já que são pouco acostumados a valorizar as demais culturas asiáticas (p. 281).

Ao lado disso, conforme assinala, Subrahmanyam (1997), a prática de trabalhar com interconexões mais ricas pode se mostrar particularmente importante para evitar os riscos de aceitação muito fácil de uma história global oficial, ou mesmo da aceitação naturalizada e suas categorias-chave, que remeteria, mais uma vez, à perspectiva ocidentocêntrica:

O início do período moderno levanta uma série de questões-chave que podem ser tratadas sob a perspectiva mais ampla da “antropologia histórica”. Assim, é de evidente interesse examinar como as noções de universalismo e humanismo emergiram em vários vocabulários, e ainda como estes termos de fato não uniram propriamente o mundo moderno nascente, mas antes levaram a novas ou intensificadas formas de hierarquia, dominação e separação (pp. 739-740).

Compreende-se que –ao escrever a partir de um lugar de enunciação historiográfica situado na Ásia, e que se quer colocar em criticidade em relação às habituais perspectivas europeias e americanas sobre a inserção do continente asiático em uma história global– Subrahmanyam mostre uma atitude de desconfiança em relação aos modelos europeus de percepção da historiografia, inclusive a História Comparada que, à época de Bloch, era pensada como uma alternativa para ultrapassar historiograficamente a crise dos nacionalismos europeus. A importância de abrir novas perspectivas como a das histórias interconectadas, as quais situam fora de uma hierarquia as diversas histórias inseridas no planeta, e de opô-las ao modo comparativo europeu, surge como uma questão de ordem importante. O ponto de vista transcendente que compara de cima os diversos recortes –mas que pode resvalar muito facilmente para a prática condescendente de admitir o outro mas conservando basicamente a leitura ocidental– é substituído pelo deslocamento dos pontos de vista, pela alternância efetiva dos centros narrativos e analíticos. É essa postura fundamental que está na determinação de Subrahmanyan (1997, p. 744) em firmar uma oposição entre as perspectivas das histórias interconectadas e da história comparada. A História Comparada –quando escrita de um ponto de vista transcendente mas, na verdade, ainda autocentrado, e grafada com o “H” maiúsculo– deve ser substituída pelas histórias múltiplas, sentidas historiograficamente por dentro e interconectando-se de modo a promover um deslocamento dos pontos de vista. Histórias ligadas sem uma hierarquia e comunicantes entre si, produzindo de fato uma perspectiva multifacetada: eis a interconexão historiográfica.

A rejeição mais radical dos modelos historiográficos ocidentais, incluindo a da própria posição autocrítica que foi trazida pela História Comparada na primeira metade do século xx, demarca a proposta da história interconectada na fundação desta designação por Subrahmanyam. Mas isto não quer dizer que, em releituras posteriores desta perspectiva, não possa ser proposta uma complementaridade entre os gestos da interconexão e da comparação. Essa tendência tem se afirmado significativamente. Podemos evocar a conciliação crítica proposta por Coelho Prado (2005) ao rever simultaneamente as posições mais radicais de Subrahmanyam e Gruzinski:

Penso, ainda, que a escolha da história comparada não exclui a abordagem de histórias conectadas. A única crítica metodológica indicada por Serge Gruzinski com relação à comparação refere-se à dificuldade de escapar da visão eurocêntrica e dos modelos dicotômicos. Do meu ponto de vista, é possível fazer história comparada e permanecer crítico das visões eurocêntricas e dicotômicas. Assim, entendo que há mais complementação entre comparação e conexão, do que exclusão (p. 30).

Subrahmanyam (1997), em seu principal artigo sobre a necessidade de afirmação das histórias interconectadas diante do quadro de modalidades já consolidado pela historiografia europeia, destaca como conceitos e perspectivas como a do “nacionalismo”, encaminhadas ao modo da historiografia tradicional, “blindaram-nos contra a possibilidade da interconexão” (p. 761). No entanto, é importante não perder de vista a possibilidade de que se encaminhe uma crítica a crítica à historiografia nacionalista mesmo no interior de nossa própria tradição historiográfica, tal como exemplificou Marc Bloch no próprio gesto de fundar, com outros historiadores, uma perspectiva de História Comparada no primeiro pós-guerra.

Abrir perspectivas comparadas, transnacionais ou interconectantes, enfim, pode ser de fato vital para fugir a certas distorções que se consolidaram imperativamente, por um motivo ou por outro. Exemplos de aberturas e caminhos historiográficos interessantes poderiam ser evocados, incluindo as diversificadas formas de encaminhar histórias interconectadas que têm surgido nos mais recentes horizontes historiográficos. Seria possível pensar a combinação da experiência das histórias interconectadas com a Micro-História. Pequenas mas significativas histórias, envolvendo diferentes atores sociais ou distintos ambientes de sociabilidade –também poderiam encontrar a sua ligação, seja a partir das grandes questões que incitam, seja a partir de certo padrão narrativo. Essas micro-histórias também poderiam ser abordadas sob a perspectiva que mais propriamente poderia ser chamada de “histórias cruzadas”, no sentido de que fazem parte não apenas da mesma trama historiográfica construída pelos historiadores, mas também de uma trama histórica na qual os personagens e situações se cruzam na sua própria época.

Conforme antes mencionado, o gesto de “interconectar”, “cruzar” ou “entrelaçar” histórias –ou, reunindo todas estas perspectivas em uma expressão única, o “gesto relacional”– constitui uma operação que pode se referir tanto à apreensão do objeto ou à construção da problematização, como à elaboração da narrativa ou do modo de encaminhar o entrelaçamento de análises. Neste último aspecto –a possibilidade de elevação do “gesto relacional” à elaboração do texto do historiador– podemos nos perguntar o que a história poderá aprender, nas próximas décadas, com o cinema e a literatura.

Para finalizar esta sessão, é importante ter em vista que, na elaboração do texto histórico, a possibilidade de “interconectar”, “entrelaçar” e “cruzar” não se aplica apenas ao aspecto narrativo, mas também ao aspecto analítico. Por um lado, o historiador pode trabalhar com a elaboração de narrativas interconectadas e cruzadas; mas ao lado disso deverá trabalhar –e isto é o principal– com análises interconectadas e análises cruzadas. “Interconectar”, “cruzar”, “entrelaçar” não são apenas gestos narrativos. No caso da história, são também gestos analíticos.

 

HISTÓRIAS CRUZADAS

A noção de “história cruzada”,5 tal como a de “histórias interconectadas”, ainda oscila em torno de certas possibilidades de sentido. Trata-se de uma noção que vem se construindo no horizonte historiográfico mais recente. Bénédicte Zimmermann e Michael Werner (2003), em um artigo no qual procuram delimitar essa modalidade, assim se expressam acerca dos caminhos historiográficos que poderiam ser situados sob a designação de história cruzada ou histórias cruzadas, no singular ou no plural conforme o caso:

Empregada há cerca de dez anos em ciências humanas e sociais, esta noção deu lugar a vários usos. Na maioria dos casos ela remete, de modo vago, a uma ou a um conjunto de histórias, associadas à ideia de um cruzamento não especificado. Ela aponta então simplesmente para uma configuração de acontecimentos, mais ou menos estruturada pela metáfora do cruzamento. Frequentemente, aliás, tais usos evocam histórias cruzadas, no plural. Este emprego corrente, relativamente indiferenciado, distancia-se das práticas de pesquisa que procuram uma abordagem mais específica. Neste caso, a história cruzada relaciona, geralmente em escala nacional, formações sociais, culturais e políticas, partindo da suposição que elas mantêm relações entre si. Ela enseja por outro lado uma reflexão acerca da operação que consiste em “cruzar”, tanto no plano prático como no plano intelectual. Mas estes usos estão apenas começando a fixar-se (pp. 89-90).

Os autores prosseguem mostrando que a história cruzada inscreve-se nessa família de campos históricos que foi inaugurada pela História Comparada há muitas décadas, e que pode ser compreendida sob o signo dos “procedimentos relacionais”, contando com a adesão de outros campos historiográficos mais recentes que, além da comparação, investiram nos “estudos de transferência”,6 na elaboração das “histórias interconectadas” e na edificação de um campo que, em português, poderia ser traduzido como “história compartilhada” (shared history). A filosofia das “histórias compartilhadas” seria a mesma que ampara os projetos voltados para o patrimônio comum entre as histórias de dois países que tiveram seu passado entrelaçado por algum liame muito forte, como é o caso das sociedades que estiveram ligadas por laços de colonialismo (caso de Brasil e Portugal, que mereceram o já mencionado Projeto Resgate com vistas à disponibilização mútua de um patrimônio documental em comum). Ao mesmo tempo, podemos pensar em temáticas diversas que poderiam remeter a shared histories, como é o caso da história de minorias religiosas que, em um país com uma forma religiosa dominante, partilham os mesmos processos de enfrentamento em relação aos mecanismos de repressão. Por outro lado, há empenho dos autores em captar a especificidade da história cruzada. Todavia, reúnem como aspectos formadores desta especificidade itens que, rigorosamente falando, não são estranhos às corretas perspectivas comparatistas, ou mesmo à História como um todo:

Mas a história cruzada ambiciona tratar objetos e problemáticas específicas que escapam às metodologias comparatistas e aos estudos de transferências. Ela permite apreender fenômenos inéditos a partir de quadros renovados de análise. Assim fazendo, ela fornece a ocasião de sondar, por um viés particular, questões gerais como escalas, categorias de análise, relação entre sincronia e diacronia, regimes de historicidade e de reflexividade. Enfim, ela coloca o problema da sua própria historicidade a partir de um triplo procedimento de historicização: do objeto, das categorias de análise e das relações entre o pesquisador e o objeto. Oferece, assim, uma “caixa de ferramentas” que, mais além das ciências históricas, pode ser operacional em muitas outras disciplinas que cruzam as perspectivas do passado e do presente (Zimmermann e Werner, 2003, p. 90).

De resto, a “caixa de ferramentas” proposta por Zimmermann e Werner não deveria deixar de estar presente em todas as modalidades da família das histórias comparadas, ou mesmo na oficina do historiador, de modo geral. Uma contribuição os autores é chamar atenção para o fato de que determinadas categorias e escalas já tradicionais para a definição dos objetos da História Comparada –região, Estado-nação, civilização– precisam ser elas mesmas repensadas a partir da sua historicidade. Nenhuma dessas categorias é “unívoca ou generalizável”, continuam os autores, mas sim “carregadas de conteúdos específicos e, portanto, difíceis de transpor em quadros diferentes”. De igual maneira, a escolha da escala nunca é neutra, “mas sempre já marcada por uma representação particular que mobiliza categorias específicas historicamente constituídas” (Zimmermann e Werner, 2003, p. 90).

Situados os problemas que desafiam as modalidades baseadas em “procedimentos relacionais”, Zimmermann e Werner empenham-se em delimitar mais propriamente o que seria a História Cruzada, segundo a sua proposta. “Cruzar”, conforme salientam os autores, é “dispor duas coisas sobre a outra em forma de cruz”. A imagem da cruz, efetivamente, permite em pensar pontos de intersecção entre as diversas realidades em cruzamento. Trata-se de uma imagem que também rompe com a perspectiva de linearidade que temos, por exemplo, com a imagem de um pólo atuando sobre o outro que aparece mais comumente nos estudos de transferências culturais, que são criticados pelos autores como modelos que estabelecem pontos de partida e de chegada muito definidos. Os pontos de intersecção são lugares onde “podem-se produzir acontecimentos suscetíveis de afetar em graus diversos os elementos em presença, segundo sua resistência, permeabilidade, maleabilidade, e de seu entorno”. “Essa ideia de interseção”, continuam os autores, “está no princípio mesmo da história cruzada” (Zimmermann e Werner, 2003, p. 96).

A imagem de cruzamento também aparece de outra forma quando se pensa no entrelaçamento, e não é de se estranhar que também tenha surgido a designação de “histórias entrelaçadas” como mais uma alternativa entre as expressões que buscam nomear os modos de fazer história que concebem realidades ou processos que se interpenetram, que entram uns nos outros, que interagem de uma maneira tal que já não se mostra possível considerar cada unidade ou fio isoladamente. Zimmermann e Werner (2003) atribuem um significado muito especial à ideia de cruzamento, e a situam no cerne de uma diferença patente entre a história cruzada e a “história comparada” (expressão com a qual designam as práticas mais conservadoras e simplificadoras da história comparada no sentido tradicional, em nossa opinião):

A noção de interseção exclui de início o raciocínio a partir de entidades individuais, consideradas exclusivamente por elas mesmas, sem ponto de referência exterior. Ela rompe com uma perspectiva unidimensional, simplificadora e homogeneizadora, em benefício de uma abordagem multidimensional que reconheça a pluralidade e as relações complexas que daí resultem. Desde logo, as entidades ou os objetos de pesquisa não são apenas considerados uns em relação com os outros, mas igualmente uns através dos outros, em termos de relações, interações, circulação. O princípio ativo e dinâmico do cruzamento aqui é primordial, em contraste com o quadro estático de comparação que tende a fixar os objetos (p. 96).

Desde já, percebe-se quer a proposta de história cruzada encaminhada por Zimmermann e Werner insurge-se contra aquelas práticas de história comparada que recaíram em operações estabilizadoras, meras superposições de objetos ou realidades isoladas unidas por um liame de análise que, ainda que os unindo no interior de uma interpretação historiográfica, conserva-os separados. Depreende-se das propostas de Zimmermann e Werner a intenção de que não se perca o objetivo de conceber dois ou mais objetos em interação e com uma atenção redobrada aos modos como eles se modificam um ao outro, no caso das realidades sincrônicas que apresentam uma relação efetiva não apenas na imaginação do historiador. A demanda por uma especial atenção às interações, que se torna possível a partir do modelo das histórias cruzadas, e a concomitante crítica ao comparativismo tradicional como um modelo que costuma isolar os objetos em análise, também é encaminhada por Eliga H. Gould (2007). Acompanhando um comentário de Kocka (2003, p. 43) –Gould ressalta que, “mais do que insistir na comparabilidade de seus objetos ou na equalidade de tratamentos entre eles”, as histórias cruzadas estão preocupadas com as “influências mútuas”, com as “percepções recíprocas ou assimétricas”, com os processos entrelaçados que se “constituem um ao outro” (Gould, 2007, p. 766). Indo para além da percepção inicial de que certos universos históricos –como o Império Espanhol ou o Império Britânico do início da modernidade– praticamente impõem a necessidade da abordagem cruzada com vistas a favorecer a compreensão da sua multidiversificação interna, Gould sugere que “longe de constituírem diferentes entidades, tal como os estudos comparativos usualmente sugerem, os dois impérios [espanhol e britânico] foram partes do mesmo sistema ou comunidade hemisférica” (Gould, 2007, p.766). Deste modo, o cruzamento no interior de uma realidade sincrônica é explorado aqui em toda a sua máxima extensão.7 De resto, as experiências de construção de histórias cruzadas do Atlântico seguem adiante, produzindo inclusive perspectivas divergentes, como é o caso da proposta de Jorge Canizares-Esguerra (2007, pp. 787-799) –historiador que critica a proposta de Gould e de outros pesquisadores a ele ligados em um artigo que traz um sugestivo título: “Histórias Cruzadas: histórias de fronteiras em novas roupas?” Retornemos, entrementes, às considerações de Zimmermann e Werner sobre a história cruzada e suas implicações:

Cruzar é também entrecruzar, entrelaçar, ou seja, cruzar diversas vezes, segundo temporalidades eventualmente distanciadas. Este caráter pelo menos parcialmente processual é o 3° aspecto constitutivo de uma problemática de cruzamentos. Remete-nos à análise das resistências, inércias, modificações
–das trajetórias, de formas, de conteúdos–, ou, de combinações que podem ora resultar do cruzamento, ora nele se desdobrar. Tais transformações, aliás, não se limitam necessariamente aos elementos postos em contacto; elas podem ainda tocar seu entorno próximo ou distante e manifestar-se segundo temporalidades distintas (Zimmermann e Werner, 2003, p. 96).

Situar elementos diversos em cruzamento, como ressaltam os dois autores, pressupõe considerar a natureza interativa de sua relação, evitando-se a perspectiva de que um pólo influencia linearmente o outro, ou simplesmente transfere algo de si ao outro. As instâncias da “reciprocidade” (“os dois elementos são afetados pela situação de relação”) e da “assimetria” (“os elementos não são afetados da mesma forma”), são indicados por Zimmermann e Werner como chaves de leitura fundamentais para a história cruzada. Além disso, tal como já observamos para o caso das histórias interconectadas no item anterior, podemos considerar que os “cruzamentos” (ou o gesto historiográfico de cruzar) podem se dar em vários âmbitos diferenciados. Podemos fazer cruzamentos no momento de investigar ou analisar as realidades em estudo; e podemos cruzar “os olhares e pontos de vista que se voltam para o objeto”. Pode-se, por fim, conceber o cruzamento nos termos de “relações entre o observador e o objeto, desencadeando assim uma problemática da reflexividade” (Zimmermann e Werner, 2003, p. 97). Desta maneira, o cruzamento pode aparecer no próprio objeto de estudo (um tema que se presta essencialmente a isso ou um problema que é exatamente um cruzamento que teve lugar em um processo histórico), como também pode aparecer ao nível das operações historiográficas mais propriamente relacionadas ao âmbito da pesquisa –seja no momento de delimitar o objeto de estudo, de investigá-lo, de problematizá-lo ou de analisá-lo–. O cruzamento pode se configurar, ainda, nas operações narrativas e textuais que se destinam a expor os resultados da pesquisa sob a forma de um texto historiográfico específico que é oferecido ao leitor.

Em síntese, de um lado o historiador pode pesquisar cruzamentos; de outro pode narrar ou elaborar seu texto analítico lançando mão de um estilo cruzado (o autor pode alternar cruzadamente narrativas diversificadas, ou pode mesmo abrir espaço, em seu texto, para várias vozes que se entrecruzam, mostrando diversos pontos de vista e expressando-se consoante discursos distintos). São muitas as possibilidades, e poderíamos pensar, nesse sentido, em diversas submodalidades de “histórias cruzadas”, considerando ainda que estas diversas submodalidades podem se combinar, sob a regência do historiador.

Zimmermann e Werner (2003) mencionam ainda uma interessante possibilidade: o “cruzamento de escalas”. Como se sabe, a atenção para as diferentes escalas de observação ou de análise que podem ser utilizadas na operação historiográfica intensificou-se a partir das últimas décadas do século xx, e em algumas correntes historiográficas essa nova forma de consciência acerca do fazer historiográfico apresenta-se como “um problema de escolha do nível de análise pelo pesquisador” (p. 102). A Micro-História, ao introduzir a micro-escala no campo de possibilidades dos historiadores –no caso por uma bem definida oposição às “macro-escalas” da historiografia tradicional– constituiu a abordagem mais impactante entre as novas modalidades historiográficas que rediscutiram o problema da escala na produção do conhecimento histórico.

Com vistas ao seu objetivo de surpreender grandes questões históricas através do micro-recorte –ou, mais propriamente, da escala de observação reduzida– os micro-historiadores costumam tomar para fontes aquelas que permitem uma análise densa, que revelam muitos dos detalhes que mais habitualmente passam despercebidos da perspectiva macro-historiográfica tradicional. Os processos criminais e inquisitoriais são exemplos de conjuntos documentais que atraem frequentemente a atenção dos micro-historiadores em vista da sua extraordinária riqueza de detalhes, das diversas vozes sociais que são perceptíveis nesse tipo de fontes, do olhar em micro-perspectiva com que o próprio investigador criminal ou o jurista costumam constituir essa espécie de documentação em sua própria época. Retornando a estes textos que um dia foram montados com o objetivo de investigar ou julgar seres humanos, os historiadores os retomam tempos depois com o fito de perceberem processos sociais, culturais e políticos que se revelam através de surpreendentes detalhes e de descrições densas e meticulosas.

Ocorre que, se a Micro-História trabalha com o “olhar micro”, e a macro-história tradicional utiliza a tradicional escala ampliada, uma das possíveis submodalidades de histórias cruzadas organiza-se precisamente em torno da possibilidade de “cruzar escalas”. Ao invés de fixar a sua escala única –“micro” ou “macro”– a história cruzada investe na instigante possibilidade de trabalhar essas duas escalas, ou outras, em um ir-e-vir que pode se aplicar tanto ao trabalho de pesquisa como à exposição textual que é ofertada ao leitor do trabalho final produzido pelo historiador. Busca-se bem mais do que simplesmente alternar as escalas, considerando que este último caso poderia se dar, mais propriamente, em um trabalho de natureza multiscópica que, em um capítulo, desenvolvesse uma análise macro-historiográfica, e, em outro, elaborasse uma análise micro-historiográfica. Com a história cruzada de escalas, para muito além disto, trata-se de pensar nas possibilidades mais inusitadas de entrelaçar escalas, contrapô-las, deixar que uma interaja sobre a outra –por vezes explorando mesmo as sutis tensões que se estabelecem entre a perspectiva que uma escala oferece e os aspectos que a outra escala permite ver ou ocultar. O “cruzamento de escalas” constitui, desse modo, uma operação a mais no repertório de possibilidades que se abre com a história cruzada. Ademais, tal como pontuam Zimmermann e Werner em sua crítica às três modalidades mais recentes que consideraram o “jogo de escalas” (micro-história, abordagem multiscópica, e alltagsgeschichte), estas parecem situar o problema das escalas apenas no âmbito de uma escolha teórico-metodológica.

A proposta de Zimmermann e Werner é chamar atenção também para “o problema da articulação empírica e do acoplamento de diferentes escalas ao nível do próprio objeto”. As escalas, dessa maneira, seriam “tanto um assunto de escolha intelectual, quanto induzidas pelas situações concretas de ação próprias aos objetos estudados”. Certos objetos empíricos, dizem os autores, “relevam de muitas escalas ao mesmo tempo e escapam a abordagens de foco único”. Nestes casos, portanto, não se trata apenas de uma escolha teórica ou metodológica, mas de uma demanda que diz respeito ao próprio objeto de estudo, e que deve ser explorada adequadamente pelo historiador que se aproxima de sua complexidade. Por vezes, o entremeado multiescalar é indissociável de certos problemas, como parece ser o caso de boa parte dos estudos transnacionais, tal como sinalizam Zimmermann e Werner (2003) ao chamarem atenção para a sua “inextrincável imbricação”:

Em uma perspectiva de história cruzada, o transnacional não pode ser simplesmente considerado como um nível suplementar de análise que viria somar-se ao local, regional ou nacional, segundo uma lógica de mudança de foco. Ele é, ao contrário, apreendido enquanto um nível que se constitui em interação com os precedentes e que engendra lógicas próprias, com efeitos retroativos sobre as outras lógicas de estruturação do espaço. Longe de se limitar a um efeito de redução macroscópica, o estudo do transnacional faz aparecer uma rede de interrelações dinâmicas, cujos componentes são em parte definidos por meio dos vínculos que entretêm e das articulações que estruturam suas posições (p. 102).

O gesto historiográfico do “cruzamento” –ou a consciência de que esta operação deve fazer parte do fazer historiográfico– parece ter conquistado o seu lugar epistemológico, enfim, no repertório de operações disponíveis aos historiadores contemporâneos. Com relação ao texto de Zimmermann e Werner –que às vezes passa da rica e meticulosa exposição teórico-metodológica ao manifesto que opõe a sua prática historiográfica a outras– podemos dizer que a história cruzada é de certo modo apresentada, pelos autores, como forma historiográfica mais desenvolvida ou mesmo evolutiva em relação à História Comparada e aos estudos de transferências. Isso porque os autores parecem dar a entender que a história cruzada teria vindo para resolver certos impasses e limitações expressas pelas duas outras modalidades, já que no texto são contrapostos os gestos historiográficos do “cruzamento” ou da “comparação”, com nítida crítica em relação ao último em decorrência da fixidez que a comparação parece impor ao objeto, ou como resultado da sua pretensa incapacidade –é o que dizem os autores– de perceber e dar a perceber as mudanças (este seria o “ponto cego” da comparação).

É interessante registrar um aparte final em relação às observações de Werner e Zimmermann. Em algum momento, parece ocorrer uma mistura de critérios na exposição de Zimmermann e Werner. A História Comparada e a história cruzada, de fato, podem ser consideradas como designações que se referem aos procedimentos, no caso a “comparação” e o “cruzamento”. Mas as “transferências” (ou os estudos de transferências) referem-se na verdade ao objeto de análise do historiador. Se é o historiador aquele que “compara”, e que “cruza”, não é ele quem “transfere”. Ele “analisa transferências”, na verdade. Dito de outra maneira, as transferências são o seu objeto nesta modalidade que tem sido situada sob o signo dos “estudos de transferências”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise panorâmica das diversas modalidades relacionais mais recentes na historiografia parece nos revelar um universo onde ainda se disputam as designações. O futuro próximo pode levar a um rearranjo nestas disputas, e talvez algumas das designações possam desaparecer ao serem agrupadas a outras pela proximidade. Zimmermann e Werner, por exemplo, admitem em certa passagem de seu artigo que “Cruzar é também entrecruzar, entrelaçar, ou seja, cruzar diversas vezes”, não acenaria isso para a perspectiva que história cruzada e histórias entrelaçadas estão muito próximas para constituírem categorias em separado? Que rearranjos poderão ser demandados, ainda, pelas histórias relacionais? Não há como saber isto ainda, pois ainda vivemos um momento de afirmações emblemáticas sobre as novas possibilidades relacionais e as modalidades que poderiam abrigá-las. De igual maneira, pôde se perceber uma tendência à crítica da História Comparada tradicional pelas modalidades relacionais emergentes.

De nossa parte, preferimos entrever como operações que não necessariamente se excluem os diversos gestos historiográficos surgidos a partir da emergência da família dos campos históricos que se baseiam nos “procedimentos relacionais”, para retomar uma expressão de Zimmermann. Neste sentido, “comparar”, “interconectar”, “cruzar”, “entrelaçar”, analisar “transferências” com a devida atenção às “reciprocidades” e “assimetrias” –estas e muitas outras operações devem fazer parte do metier dos historiadores nos tempos contemporâneos.8 Pensamos também que, se a história comparada pode ser compreendida em um sentido mais estrito, ela também pode ser evocada, pelo seu pioneirismo, como uma instância mais ampla, na medida que o gesto de comparar abre-se, de certo modo, a possibilidades diversas como o cruzamento e o entrelaçamento, ao lado da comparação mais tradicional. Neste sentido, a História Comparada também poderia ser evocada como uma família mais ampla que inclui diversos gêneros historiográficos, tais como história cruzada, histórias entrelaçadas, histórias interconectadas, histórias transnacionais, história global, além dos gêneros de história comparada propriamente dita que se afirmaram desde a primeira metade do século xx.

O emprego de uma expressão com duas acepções, uma com um sentido mais abrangente (a história comparada como sentido mais amplo), a qual englobaria outras especificidades, e outra com um sentido mais restrito (a história comparada como uma modalidade mais específica dentro deste circuito mais amplo), é análogo a outras situações. Por exemplo, não é raro o uso da expressão história social com um sentido mais amplo, que abrangeria diversas modalidades como as histórias cultural, econômica, política, etc., e um sentido mais restrito, que define uma “história social” que estuda grupos sociais, movimentos sociais e fenômenos mais específicos. Da mesma forma, utiliza-se muito a palavra Interdisciplinaridade, em sentido mais amplo, como um campo atento às trocas de diversos tipos entre os campos de saber, e a interdisciplinaridade em sentido estricto, alinhada à transdisciplinaridade, multidisciplinaridade, etc. Pode ser que a comunidade historiadora, tenda, no futuro, a conservar as duas designações.

Por outro lado, o uso de uma expressão que vimos neste texto –os “procedimentos relacionais”, os quais abrangeriam os gestos da comparação, do cruzamento, da interconexão, do compartilhamento, e da leitura transnacional– poderia ser empregado no futuro para definir a modalidade mais ampla, deixando-se a designação história comparada apenas para se referir à modalidade que se centra no gesto comparativo. As designações, na verdade, ainda estão sendo disputadas, pois algumas das modalidades que examinamos neste artigo são relativamente recentes, contando com menos de vinte anos de fortuna crítica. Pode se dar que algumas destas designações desapareçam em favor de uma, como por exemplo a história cruzada e as histórias entrelaçadas. Mas este é um movimento que ainda surgirá de demandas da comunidade historiadora. De todo modo, tal como sugerimos neste artigo, os gestos de comparar, cruzar, interconectar, entrelaçar, não são excludentes, constituindo todos procedimentos relacionais que podem ser viabilizados pelos historiadores. Tal como uma análise historiográfica pode alternar, em sessões distintas de um mesmo trabalho, as abordagens macro-historiográfica e micro-historiográfica, com menos dificuldade ainda podemos pensar as alternâncias entre os gestos relacionais. Por fim, não há como negar que certos problemas mais amplos que motivaram o surgimento das diversas modalidades que abordamos neste artigo –história comparada, histórias cruzadas, histórias interconectadas, história transnacionais, etc.– definem um terreno comum de preocupações que podem assegurar um diálogo entre os diversos campos historiográficos que tem se constituído em torno dos procedimentos relacionais. A crítica ao tratamento necessariamente centrado em categorias como o nacionalismo ou a região administrativa, por exemplo, podem traspassar os diversos campos, inclusive a história comparada. A possibilidade de tratar com maior criatividade e ousadia os recortes de tempo e espaço também não pode ser evocada com exclusividade por nenhuma das modalidades relacionais. O mesmo se pode dizer da experimentação de novos modelos de escrita historiográfica, incluindo a inspiração em campos de expressão como o cinema e a literatura moderna. De igual maneira, a crítica mais severa a um certo setor da história comparada, o qual não teria cumprido o seu programa crítico em relação a categorias e práticas típicos da historiografia tradicional, pode e tem sido encaminhado não apenas pelas modalidades relacionais mais recentes, mas mesmo por setores mais críticos da própria História Comparada. Não se apresenta aqui um ponto de necessária dissonância, ainda que –tal como é comum por ocasião do surgimento e consolidação inicial de novas propostas e modalidades historiográficas– tenha havido uma ênfase maior dos manifestos fundadores das modalidades recentes na crítica mais radical àquela que foi pioneira entre os campos historiográficos relacionais. As próximas décadas talvez tragam maiores adequações.

 

REFERÊNCIAS

Baylin, B. (2005). Atlantic historyconcept and contours. Cambridge: Harvard University Press.

Benjamin, W. (2008). Teses sobre o conceito o História. En Walter Benjamin: obras escolhidas –magia e técnica; arte e política (pp. 222-231). São Paulo: Brasiliense.

Canizares-Esguerra, J. (2007). Entangled histories: Borderland historiographies in new clothes? American History Review, 112(3), 787-799. Recuperado de http://www.jstor.org/stable/40006671

Citino, N. J. (2001). The global frontier: Comparative history and the frontier-borderlands approach in American foreign relations. Diplomatic History, 25(4), 677-693. doi: 10.1111/0145-2096.00291

Cohen, D. (2004). Comparative history: buyer beware. En D. Cohen e M. O’Connor (eds). Comparison and history: Europe in cross-national perspective (pp. 57-70). New York: Routledge.

Crosley, P. (2015). O que é a História Global. Petrópolis: Editora Vozes.

Daskalov, R. D. e Marinov, T. (2013). Entangled histories of the Balkans. Volume i: National ideologies and language policies. Bucharest: European Research Concil/Brill.

Games, A. (2006). Atlantic history: Definitions, challenges, and opportunities. American Historical Review, 111(3), 741-775. doi: 10.1086/ahr.111.3.741

Goscha, Ch. E. e Ostermann, Ch. (2009). Connecting histories: Decolonization and the cold war in southeast Asia (1945-1962). Stanford: Woodrow Wilson Center Press.

Gould, E. H. (2007). Entangled histories, entangled words: the english-speaking Atlantic as a spanish periphery, American Historical Review, 112(5), 765-786. doi: doi: https://doi.org/10.1086/ahr.112.3.764

Gruzinski, S. (2001). Os mundos misturados da monarquia católica e outras histórias conectadas. Topoi, 2(2), 175-195. doi: 10.1590/2237-101X002002007  

Hanifi, S. M. (2011). Connecting histories in Afghanistan: Market relations and state formation in a colonial frontier. Stanford: Stanford University Press.

Johnson, B. (2002). Engendering nation and race in the borderlands. Latin American Research Review, 37(1), 259-271. Recuperado de http://www.jstor.org/stable/2692114

Kocka, J. (2003). Comparison and Beyond. History and Theory, 42(1), 39-44. doi: 10.1111/1468-2303.00228

Levi, G. (2003). Problema de escala, Relaciones, xxiv(95), 281-299.

Lieberman, V. (1991). Secular trends in burmese economic history, c. 1350-1830, and their implications for state formation. Modern Asian Studies, 25(1), 1-31. doi: 10.1017/S0026749X00015821

Linebaugh, P. e Rediker, M. (2008). A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras

Middell, M. (2000). Kulturtransfer und historische Komparatistik. Thesen zu ihrem Verhãltnis, Comparativ, 10, 7-41.

Prado, M. L. C. (2005). Repensando a história comparada da América Latina, Revista de História, 153, 11-33. doi10.11606/issn.2316-9141.v0i153p11-33

Seeman, E. R. e Canizares-Esguerra, J. (2007). The Atlantic in global history (1500-2000). Upper Saddle River (NJ): Pearson Prentice Hall.

Seigel, M. (2005). Beyond compare: comparative method after the transnational turn, Radical History Review, 91, 62-90.

Subrahmanyam, S. (1997). Connected histories: Notes towards a reconfiguration of early modern eurasia, Modern Asian Studies, 31(3), 735-762. doi: 10.1017/S0026749X00017133

Tyrrell, I. (1999). Making nations/Making states: American historians in the context of empire, The Journal of American History, 86(3), 1033-1067.

Weber, D. J. (2000). The spanish borderlands of North America: A historiography. Magazine of History, 14(4), 5-11. doi: 10.1093/maghis/14.4.5

Yuko, T. (1995). Le monde comme représentation symbolique: Le Japon de l’époque d’Edo et l’univers du mitate. Annales, Histoire, Sciences Sociales, 50(2), 259-281.

Zimmermann, B. e Werner, M. (2003). Pensar a História Cruzada: entre empiria e reflexividade, Textos de História, 11(1-2), 83-127 [original: Annales, jan.-fev. 2003]. Recuperado de http://periodicos.unb.br/index.php/textos/article/view/5923

1                      Para uma discussão sobre o conceito de história atlântica, ver Baylin (2005), e Games (2006, pp. 741-75). Para temáticas variadas sobre o Atlântico na História Global, ver Seeman, e Canizares-Esguerra (2007).

2                      As histórias de fronteiras têm se multiplicado nos EUA nas últimas décadas. Ver Weber (2000, pp. 5-1); Johnson (2002, pp. 259-271) e Citino (2001, pp. 677-693).

3                      Esta posição se aproxima à de Tyrrell (1999), que assinala certo fracasso da História Comparada em efetivamente ter “transcendido os limites da historiografia nacionalista” (p. 1033).

4                      Entre os historiadores que têm adotado a designação de “connected histories” há muitos voltados para os estudos sobre América Latina, África, Ásia. Para os dois últimos casos, ver Goscha e Ostermann (2009); Hanifi (2011); Levi (2003, pp. 281-299).

5                      Histoire croisée, em francês, ou a modalidade que tende a ser traduzida por Entangled history, em inglês (palavra que, em sentido mais rigoroso, refere-se a “emaranhado”, mais do que a “cruzamento”).

6                      As relações entre transferência cultural e História Comparada mereceram um artigo específico de Mathias Middell (2000, p. 7-41). Um nome importante dos estudos de transferências é o de Michel Espagne (n. 1952).

7                      Em “Histórias Cruzadas, Mundos Cruzados”, Gould (2007, p. 766) admite a designação histórias conectadas, ao lado de histórias cruzadas, para o estudo das interações entre o Império Britânico e o Império Espanhol.

8                      Essa também parece ser a perspectiva de Roumen Daskalov e Tchavdar Marinov (2013) ao organizar o livro História Cruzada dos Bálcãs. Ainda que incorporando a designação “Entangled History of Balkans”, os autores buscam tratar a história moderna dos Bálcãs a partir de uma perspectiva simultaneamente transnacional e relacional que combina de formas diversas as histórias compartilhadas, interconectadas, cruzadas, sem esquecer as perspectivas da transferência e de outros tipos de cruzamentos.