A Guerra do Chaco vista pelos olhares dos militares do exército brasileiro (1932-1935)

La Guerra del Chaco vista por los ojos de los militares del ejército brasileño (1932-1935)

The Chaco War Seen through the Eyes of the Brazilian Military (1932-1935)

 

Fernando da Silva Rodrigues

0000-0003-3743-7970

Universidade Salgado de Oliveira, Brasil

fernandoahex@gmail.com

 

Érica Sarmiento da Silva

0000-0001-6133-4328

Universidade Salgado de Oliveira e

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

erisarmiento@gmail.com

 

Resumo: Esta investigação analisou parte da documentação produzida pelo Exército brasileiro, que revela a posição institucional sobre a Guerra Boliviano-Paraguaia no Chaco Boreal, conflito ocorrido, entre os anos 1932 a 1935, nas fronteiras centrais da América do Sul, procurando identificar nesses documentos construções históricas e políticas sobre as tensões fronteiriças, na década de 1930. O artigo reforça ainda que, além do conflito entre Bolívia e Paraguai, ocorriam tensões políticas estabelecidas entre o Brasil e a Argentina por conta da rivalidade tradicional e da disputa pelo controle do poder regional. A investigação, pautada nos argumentos teóricos estabelecidos pela geopolítica de Mário Travassos ajudou, também, a demonstrar que os militares brasileiros do período foram os principais responsáveis pela intervenção da região Norte e do Centro-Oeste brasileiro considerando, para este propósito, a ocupação territorial e o controle dos limites terrestres, para manutenção da soberania nacional.

Palavras-chave: Guerra do Chaco; militar; política; fronteiras; diplomacia.

 

Resumen: Esta investigación analizó parte de la documentación producida por el ejército brasileño, que revela la posición institucional sobre la guerra boliviano-paraguaya en el Chaco Boreal, conflicto ocurrido entre los años 1932 y 1935 en las fronteras centrales de América del Sur, para tratar de identificar en esos documentos construcciones históricas y políticas sobre las tensiones fronterizas en la década de 1930. El artículo refuerza que, además del conflicto entre Bolivia y Paraguay, ocurrían tensiones políticas establecidas entre Brasil y Argentina por la rivalidad tradicional y la disputa por el el poder regional. La investigación, pautada en los argumentos teóricos establecidos por la geopolítica de Mário Travassos, ayudó también a demostrar que los militares brasileños del periodo fueron los principales responsables por la intervención de la región Norte y del Centro-Oeste brasileño considerando, para este propósito, la ocupación territorial y el control de los límites terrestres, para mantener la soberanía nacional.

 

Palabras clave: Guerra del Chaco; militar; política; fronteras; diplomacia.

 

Abstract: This study analyzed part of the documentation produced by the Brazilian Army, showing the Institutional position on the Bolivian-Paraguayan war in the Boreal Chaco, a conflict that took place between 1932 and 1935, in the central borders of South America. It used these documents to identify historical and political constructions about border tensions in the 1930s. The article underlines the fact that, in addition to the conflict between Bolivia and Paraguay, political tensions between Brazil and Argentina arose due to the traditional rivalry and fight for control of regional power. The research, based on the theoretical arguments established by the geopolitics of Mário Travassos, also showed that the Brazilian military of the time were primarily responsible for the intervention of the North and the Central-West region of Brazil, considering the territorial occupation and control of the terrestrial limits, to maintain national sovereignty for this purpose.

Key words: Chaco War; military; politics; borders; diplomacy.

 

Recebido: 2 de setembro de 2017 Aceito: 26 de março de 2018

 

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como proposta refletir, a partir do campo político-militar, como os militares brasileiros observaram e registraram a Guerra Boliviano-Paraguaia (1932-1935), ocorrida na região do Chaco Boreal, tomando como base de análise parte da bibliografia, e os documentos produzidos pelo Exército brasileiro.

A investigação partiu da análise da política do Estado brasileiro, em um momento que havia se consolidado a construção dos limites fronteiriços norte e centro-oeste com os países da América do Sul, através dos trabalhos da Comissão de Inspeção de Fronteiras, chefiada pelo General Cândido Mariano da Silva Rondon, entre 1927 e 1930. A partir de 1930, o Estado brasileiro enfatizou a vigilância e a preocupação com a defesa das fronteiras, em virtude de dois conflitos contemporâneos que ocorreram na América do Sul: a Guerra do Chaco, conflito entre a Bolívia e o Paraguai (1932-1935), na fronteira oeste; e a Questão Letícia, conflito entre a Colômbia e o Peru (1932-1934), na fronteira norte.

Durante a Primeira República,1 uma das primeiras intervenções realizadas pelo Estado brasileiro foi a integração do litoral com o interior, com a construção de linhas telegráficas; e, a segunda foi ratificar/retificar o trabalho de demarcação dos limites terrestres através das Inspeções de Fronteiras. Havia consenso político e militar, partindo do entendimento de que uma das vulnerabilidades brasileira, no início do século xx, ainda era a pouca penetração do Estado no interior do Brasil, com uma grande concentração populacional no litoral, e o predomínio de vazios demográficos no sertão. Ocupar o interior, ainda era uma das prioridades do Estado brasileiro, considerada obra de maior importância para a segurança nacional.

Em 1927, o então presidente da república do Brasil, Washington Luis Pereira de Sousa (15 de novembro de 1926 a 24 de outubro de 1930) determinou a inspeção das fronteiras do Brasil até o final de seu governo, com o objetivo de estudar as condições de seu povoamento e segurança, sendo então o General de Divisão, Cândido Mariano da Silva Rondon, nomeado Inspetor de Fronteira. A inspeção no Norte e no Centro-Oeste tinha por objetivo percorrer a linha de fronteiras do Brasil com a Guiana Francesa, Guiana Holandesa (República do Suriname), Guiana Inglesa (República da Guiana), Venezuela, Colômbia, Peru, e Bolívia, dividida em campanhas pelos Estados brasileiros do Pará, do Amazonas, e do Mato Grosso (Atual Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul). O reconhecimento das fronteiras brasileiras no Norte e Centro-Oeste se tornou uma necessidade primordial para a consolidação da soberania sobre o território. O processo civilizador dos grupos indígenas serviu para a integração do litoral ao sertão, sendo esta etapa o passo mais importante para a conquista da região.

No entendimento de Lima (1998, p. 22), sertão e litoral surgem no pensamento social brasileiro como imagens simbólicas de grande força, revelando as diferenças das diversas formas de organização social e cultural. Para a socióloga, uma das possibilidades de analisar o seu sentido é na diferença entre tradição e modernidade, tema investigado pelo cientista político Carvalho (1999) no capítulo O Brasil de 1870-1914: a força da tradição, do livro, Pontos e bordados: escritos de história e política:

Apesar de existir consenso na literatura sobre o avanço da modernidade no Brasil após 1870, a tradição foi suficientemente forte para manter os valores de uma sociedade rural, patriarcal, hierárquica. A modernidade ela mesma assumiu feições que a distinguiam do modelo clássico representado pela experiência anglo-saxônica. Preparou-se nesse período entre 1870 e 1914 o terreno para a modernização conservadora dos anos 30. (p. 107)

A Primeira República no Brasil foi um momento importante para a nossa história política e para o desenvolvimento das relações internacionais, principalmente, com relação à consolidação do território, e o controle das fronteiras Norte e Centro-Oeste. A implantação do telégrafo ajudou a controlar a comunicação com o interior, mas a Inspeção das fronteiras realizadas pelo general Rondon completara o serviço de consolidação territorial, ratificando as antigas demarcações, e projetando, nos anos 1930 e 1940, o Brasil para uma intensa atividade diplomática, no qual atuou como pacificador decisivo na superação de grandes conflitos regionais da América do Sul, como foi o caso da Guerra do Chaco, entre a Bolívia e o Paraguai (1932-1935), estudado nessa pesquisa; da Questão Letícia, conflito entre a Colômbia e o Peru (1932-1934), na fronteira do Brasil; e do choque entre o Peru e o Equador (1941-1942).

Com relação aos procedimentos metodológicos, este trabalho utilizou principalmente os documentos impressos e manuscritos (registros escritos) da série Ministério da Guerra e Estado Maior do Exército (eme), durante o período de 1932 a 1935, além do Acervo Pessoal do General Waldomiro Castilho de Lima, que se encontra no Arquivo Histórico do Exército. Introduzimos, dessa forma, na pauta da discussão, os interesses políticos dentro de uma instituição pública com projeção política na vida republicana do Brasil, mas, fundamentalmente, analisamos o interesse institucional na ocupação do espaço como forma de garantia e de defesa das fronteiras, e da soberania do Estado.

Como podemos perceber esses registros escritos, tornam-se objeto de estudo para o historiador, deixam pistas que podem ser entendidas através da análise. Os registros esperam para serem operados, e as narrativas sobre eles, esperam para serem reconstruídas. Para Bloch (2001), “Uma ciência, entretanto, não se define apenas por seu objeto. Seus limites podem ser fixados, também, pela natureza própria de seus métodos” (p. 68). As fontes também são construções que expressam as intenções de quem às produz. E principalmente é importante estar alerta para a subjetividade, presente nas narrativas. Um equívoco comum no processo de pesquisa é que, na maioria das vezes, os pesquisadores partem de uma visão histórica que identifica a produção do conhecimento como se fosse real, não percebendo como construção. Nesse caso, o que buscam é uma maior quantidade de dados que completem um conhecimento histórico objetivo, verdadeiro, que já estaria à disposição. Assim como Bloch (2001, p. 79) compreendemos que as fontes de pesquisa não falam por si, elas não contêm toda a história, e sua análise também não é sinônimo de que você conseguirá trazer à tona a realidade.

Nesse caso, trataremos, nessa investigação da análise dos documentos escritos produzidos pelo Exército brasileiro e, mais especificamente, do estudo sigiloso feito sob a direção do General Waldomiro Castilho de Lima, da Inspetoria do 1º Grupo de Regiões Militares sobre A Questão do Chaco Boreal, de 1934; e do Relatório Secreto Synthese das informações colhidas sobre a guerra boliviano-paraguaya, no Chaco Boreal, e seus antecedentes, produzido pela 2ª Seção do Estado Maior do Exército, de 1935.

O uso das fontes escritas durante a investigação contribuíram para a elaboração desta pesquisa. É importante frisar que a documentação levantada no acervo analisado recebeu, até o momento, pouca atenção de parte dos pesquisadores acadêmicos. Os documentos, pelo seu ineditismo, contribuirão para preencher parte das lacunas existentes e renovar a produção historiográfica republicana brasileira e sul-americana, pois abordam temáticas relacionadas tanto à História Política quanto à História Militar. Os documentos consultados localizam-se no Arquivo Histórico do Exército brasileiro, na cidade do Rio de Janeiro, sendo os acervos de origem pública e oficial, documentos institucionais, e divididos em um importante conjunto documental formado por fontes manuscritas, acervos pessoais de militares, fontes impressas e livros escritos no período, reveladores do pensamento político desses militares.

O acervo documental pesquisado recebeu tratamento em nível qualitativo, através da análise do discurso. A abordagem qualitativa visou investigar a bibliografia, os acervos pessoais, e os relatórios produzidos pelo Estado Maior do Exército brasileiro, cujos textos foram analisados enquanto discurso de época a ser compreendido e questionado quanto à formulação dos atores políticos, ao papel no processo interventor e à construção da soberania do Estado. È necessário considerar que todo documento é portador de um discurso, uma construção, e não pode ser visto apenas como um registro que reproduz a verdade. Um texto não se dissocia de seu contexto de produção. Para analisar um registro escrito, a análise de um discurso deve contemplar simultaneamente três dimensões fundamentais: o intratesto, o intertexto e o contexto. O intratexto, ou o que está por trás do texto escrito, se refere aos aspectos internos do texto e implica na avaliação do texto como objeto de significação. O intertexto corresponde ao relacionamento de um texto com outros textos, para comprovar sua veracidade. O contexto representa à relação do texto com a realidade que o produziu e que o envolve (Barros, 2002, pp. 136-137).

Para o historiador Albuquerque Junior (2009), discurso é uma fala ou oração feita para dada audiência podendo ser escrita previamente ou dita de improviso (p. 223). Nesse aspecto, quando utilizamos análise de discursos como metodologia de pesquisa, não devemos perguntar apenas o que esses discursos nos falam do passado, mas também atentar para quais informações esses discursos nos traz. É o caso de perguntar como esses discursos foram produzidos, em que época, por quem e em quais circunstâncias. Podemos entender, que os discursos são participantes dos eventos de uma determinada época tendo a função de tornar o passado e seus personagens vivos (p. 228). Albuquerque Junior (2009) destaca ainda, que o investigador ao se lançar sobre os discursos deve ficar atento para a parte externa dos mesmos A análise externa se relaciona com tudo aquilo que cerca o autor do discurso, as circunstâncias que estão ao seu redor, o período em que foi realizado o discurso, a localização e quais eram os objetivos do autor (p. 238). Acho que esses parágrafos ficaram muito isolados da temática. Talvez fosse melhor ir direto ao ponto e entrelaçá-los com temática, ao invés de realizar esclarecimentos e explicações sobre questões metodológicas de forma isolada.

Na análise do discurso feita nos documentos produzidos pelo Exército brasileiro, identificamos interesses geopolíticos que marcaram a visão dos militares brasileiros da época, acerca das tensões na América do Sul, dos interesses relacionados à disputa de poder regional, da rivalidade tradicional, e mais especificamente, sobre a preocupação com a vigilância das fronteiras. O que percebemos é que essa documentação sobre conflitos armados, fruto de nossa investigação, articulada a outros documentos sobre fronteiras e território, produzida no Exército brasileiro está formando um mosaico, que vai dar forma aos projetos de Estado esquecidos ou ainda pouco investigados, produzidos sob a influência de pensamentos políticos de intelectuais nacionais e estrangeiros, os quais influenciaram gerações e épocas importantes da história brasileira e americana. Nesse contexto, a geopolítica parece ter sido a ciência que mais agiu sob os interesses políticos e militares ligados aos estudos de fronteiras, do território e da defesa.

 

A GEOPOLÍTICA BRASILEIRA E A DISPUTA DE PODER NA AMÉRICA DO SUL

Becker (2005) em conferência proferida no Instituto Avançados da Universidade de São Paulo, em 27 de abril de 2004, afirmou que a geopolítica é um campo de conhecimento que analisa as relações entre poder e espaço geográfico. Para a geógrafa foi fundamental o emprego do sistema de povoamento português utilizado no sertão brasileiro, desde o tempo colonial, considerado como principal ação responsável pela ocupação do território. Para a autora, a geopolítica sempre se caracterizou pela presença de pressões de todo tipo, assim como pelas intervenções no cenário internacional, perpassando pelas atuações mais brandas, como ações diplomáticas, até as táticas de guerras e conquistas de território.

Para o internacionalista português Freitas (2004, p. 12-13), a geopolítica construída no Brasil durante os anos de 1920 a 1930 deve ser incluída numa tradição histórica de defesa da soberania e expansão territorial, com raízes nas atividades de Alexandre de Gusmão, durante os trabalhos realizados na defesa do Tratado de Madri, de 1750. Ao tratar dos modernos precursores do pensamento geopolítico brasileiro, Freitas corrobora com a formulação de Miyamoto,2 que divide a evolução do pensamento geopolítico brasileiro em cinco fases temporais e insere a geopolítica de Mário Travassos na primeira fase, à relativa aos estudos pioneiros realizados nos anos de 1920 e 1930, quando a geopolítica começou a ser sistematizada.

Para entender o interesse político do Estado brasileiro na Guerra do Chaco é importante analisar o pensamento de Mário Travassos formado ao longo da sua carreira militar e registrado nos seus livros. A principal obra Projeção Continental do Brasil, de 1935, apresenta a política interna brasileira como indissociável de uma política continental. A discussão foi inicialmente tratada em um ensaio intitulado Aspectos Geográficos Sul-Americanos, editado em 1931.

Vale ressaltar que o pensamento de Travassos influenciou diretamente na formação da geração de militares do pós segunda guerra mundial, aqueles que produziram e renovaram conhecimento teórico sobre geopolítica no Brasil, desde o coronel Golbery do Couto e Silva (1967), até o general Carlos de Meira Mattos (1975, 1977, 1980, 1990). Autores que basearam suas análises acerca da América do Sul, no antagonismo entre a Bacia do Prata e a Bacia Amazônica, tal como foi definido no livro Projeção Continental do Brasil.

A obra do então capitão do Exército Mário Travassos, influenciada pela Escola francesa de Geografia (Possibilismo);3 pelos trabalhos do geógrafo Halford John Mackinder (teoria geopolítica e estratégica do poder terrestre),4 membro da Real Sociedade Geográfica de Londres; e pela Escola alemã de Friedrich Ratzel (Determinismo Geográfico),5 tem por objetivo fundamentar a posição do Brasil na América do Sul e sinalizar os rumos de uma política externa capaz de guiar o Brasil a uma posição de hegemonia regional, superior a da Argentina. Travassos utilizou o conceito mackinderiano de heartland para a necessidade vital brasileira de domínio dos altiplanos bolivianos, onde se dava a hegemonia de Buenos Aires, que ainda detinha a vantagem da situação geográfica em relação à extensa Bacia do Prata. Logo, o pensamento de Mário Travassos sistematiza os interesses de poder do Estado brasileiro, nos anos 1930 e 1940, e as relações do Brasil com a Argentina. O discurso nacional-desenvolvimentista alerta para três problemas que o Estado brasileiro deveria estar atento: a emergência de potências rivais como a Argentina e os Estados Unidos da América; a vulnerabilidade dos países limítrofes da América do Sul, em especial, o caso da Bolívia, cujo planalto era considerado geograficamente contínuo ao atual estado do Mato Grosso do Sul; e a falta de organização nacional em relação aos desafios anteriores apontados. O debate de Travassos está relacionado com o esforço de integrar o território brasileiro, aproveitando seus recursos hídricos e econômicos, principalmente em áreas consideradas vulneráveis, como Foz do Iguaçu e a bacia Amazônica.

No contexto da disputa de poder do continente sul-americano, a obra de Travassos identifica uma Argentina melhor estruturada economicamente e que possui outras vantagens em relação ao Brasil, como a bem organizada rede de transportes. No entanto, o tamanho do território brasileiro, e a possibilidade de influenciar outros países deveriam ser observados como fatores essenciais para a organização de uma qualificada e diversificada rede de transportes, detentora de uma rede fluvial na bacia do Amazonas, e na bacia platina, de um sistema ferroviário, bem como possuidora de um sistema aéreo em toda extensão do território nacional. Travassos (1935, p. 186) propõe como estratégia, levar o debate político e o desenvolvimento econômico para o interior do Brasil, aumentando o fator demográfico, para, dessa forma, diminuir o vazio populacional dos sertões brasileiros.

Podemos inserir nesse debate a importância dada à potencialidade do papel dos portos marítimos, na condição de elemento de integração do conjunto continental, do litoral ao sertão norte e centro-oeste do Brasil. Como exemplo, Travassos cita o caso da Bolívia, país localizado na fronteira oeste com o Brasil e centro geográfico do continente sul-americano, que estava estrategicamente dividido entre a necessidade de ter um porto no oceano Pacífico e outro no oceano Atlântico. A decisão poderia provocar a instabilidade na região pois, no caso de um conflito bélico inevitavelmente ocorreria o aumento das tensões políticas entre Brasil e Argentina, nações que disputavam a hegemonia política sul-americana (Travassos, 1935, p. 64).

No contexto desse debate e no estudo das condições geográficas da América do Sul, Travassos analisa o potencial estratégico e econômico do triângulo formado pelas cidades bolivianas de Cochabamba, Santa Cruz de La Sierra, e Sucre, como uma alternativa para limitar as vantagens do acesso viário à bacia platina, e, também, pelo fato de localizar-se no limite do estado brasileiro do Mato Grosso, região central do continente (Travassos, 1935, p. 4). Na opinião de Travassos somente o controle desse triângulo geopolítico permitiria a neutralização efetiva da superioridade dos países da bacia do Prata, e, naturalmente, a hegemonia da Argentina sobre a região central da América do Sul e sobre os estados periféricos formados pelo Uruguai, Paraguai e Bolívia. Como podemos observar, segundo argumento de Mário Travassos, o Estado da América do Sul que conseguisse controlar esse ponto estratégico, poderia manobrar a dinâmica econômica da região, e exercer o domínio do poder continental ao Sul do Equador. Para o autor, a cidade de Santa Cruz de La Sierra seria o polo de convergência das influências amazônicas e platinas; a cidade de Cochabamba o polo de influência andina e também sujeita a atrações amazônicas; e a cidade de Sucre seria o centro das influências platinas.

Freitas (2004, p. 18) identificou, dentre as medidas sugeridas por Travassos, como a principal, a construção de uma infraestrutura de transportes, por meio da navegação fluvial na bacia do Amazonas e da utilização de uma rede ferroviária no Mato Grosso. Essa infraestrutura de transportes teria capacidade de carregar produtos da região boliviana para os portos no oceano Atlântico, do litoral brasileiro, melhorando os pontos de passagens da cordilheira dos Andes pela bacia amazônica, de forma a projetá-la como centro de influência sobre a Bolívia e a Colômbia, o que permitiria quebrar o controle exercido pelo Estado argentino sobre a economia da Bolívia.

Essa consolidação do pensamento geopolítico, principalmente no meio militar brasileiro, a partir dos anos 1930, intensificou a rivalidade com a Argentina. A obra de Mário Travassos (1935), Projeção Continental do Brasil, foi identificada como referência para estudos históricos, militares e diplomáticos brasileiros, como foi o caso do livro do historiador Hélder Gordim da Silveira (1997). A discussão central da obra, que coloca a Argentina como a principal potência da região, vai encontrar no meio militar da época, ambiente favorável para intensificação dos debates e das tensões envolvendo as duas nações.

 

A GUERRA DO CHACO: NA VISÃO DA PRODUÇÃO HISTÓRICA E DOS DOCUMENTOS MILITARES BRASILEIROS

O Chaco Boreal compreende uma vasta planície, com aproximadamente, 170 000 km2, sendo limitado a leste pelo rio Paraguai, a oeste pelo rio Pilcomayo, e ao norte pela serra de Santa Cruz. No terreno há ausência de pedra, sendo salobro em alguns lugares. Havia várias salinas no interior e na época da seca produzia-se uma camada de pó que, ao contato com as águas das chuvas, formava uma lama espessa, tornando-se quase impossível o trânsito. Existia uma cobertura de vegetação, de grande talhe, formando matas descontínuas, e também espécies menores, no intervalo de extensos campos, em que se encontravam lagoas passageiras, geradas pelas águas pluviais, e rios que se originam dessas lagoas (Carvalho, 1958, p. 34). A região foi alvo de disputas, a partir da segunda metade do século xix, entre Bolívia e Paraguai.

O conflito no século xx, entre os dois países latinos, foi marcado por experiências trágicas no campo militar, tais como: a Guerra da Tríplice Aliança, confronto entre uma força conjunta do Brasil, Argentina e Uruguai, contra o Paraguai (1864-1870); e a Guerra do Pacífico, confronto de uma força conjunta entre Bolívia e Peru, contra o Chile (1879-1883). Deixando de lado as atrocidades inerentes de uma guerra, podemos observar que esse conflito sul-americano constituiu-se, na época, em um laboratório para o emprego dos mais avançados materiais bélicos disponíveis no mundo, alguns dos quais seriam utilizados posteriormente durante a Segunda Guerra Mundial, como foi o caso do uso de aviação e de carros de combate. A partir desse contexto, apresentaremos uma parte da historiografia que analisa o conflito através de várias teses explicativas e da utilização de alguns documentos produzidos pelo Exército brasileiro sobre a Guerra entre a Bolívia e o Paraguai, no Chaco Boreal.

Para analisar a Guerra Boliviano-Paraguaia, através da visão brasileira, tomamos como base uma das poucas obras de referência da historiografia nacional produzida sobre o tema, o livro de Silveira (1997), Argentina X Brasil: a Questão do Chaco Boreal. O autor utiliza como fonte principal as correspondências diplomáticas e alguns documentos militares do Exército, que foram encontrados no Arquivo Nacional do Brasil, e que fazem parte de um corpus documental produzido pelo Estado Maior. Estes documentos serviram para o autor examinar a forma como a instituição militar avaliou a Guerra do Chaco. Silveira investiga a disputa de poder entre Brasil e Argentina na América do Sul a partir de uma perspectiva economicista e geopolítica. Essa disputa é marcada pela visão da doutrina de caráter geopolítico, que se consolidou no Brasil ao longo dos anos 1930, influenciada pela obra de Mário Travassos (1935), e tendo como contexto a Guerra Boliviano-Paraguaia.

Na perspectiva do autor, a rivalidade tradicional com a Argentina em torno da supremacia estratégica na América do Sul, foi renovada na visão militar brasileira durante os estudos realizados sobre a guerra, na Escola de Estado Maior, por conta da intervenção dos serviços diplomáticos do Brasil e da Argentina, na questão do Chaco Boreal. Em relação a essa discussão, podemos identificar essa tensão, no processo de busca pela paz no transcurso do conflito, e na construção de um arranjo internacional mais eficaz para a região, durante a Conferência de Buenos Aires (1935-1938).

Nesse caso, a obra de Silveira (1997), um dos poucos livros completos produzidos no Brasil sobre o tema, com a utilização, principalmente, de fontes diplomáticas e algumas obras bibliográficas de referência, deixa em aberto lacunas historiográficas que podem ser preenchidas a partir de novas abordagens, como, por exemplo, a análise da participação política intervencionista dos militares brasileiros no processo. Ou seja, essa lacuna pode ser preenchida, a partir de uma pesquisa mais aprofundada na documentação produzida pelo Exército brasileiro, que na totalidade fazem parte de um mosaico relacionado ao projeto político e militar do estado brasileiro para a defesa das fronteiras. Um estudo mais profundo, quiçá, pudesse dar conta da elaboração de um projeto político para as fronteiras do Brasil (1889-1945), com a análise das coleções de documentos da Primeira e Segunda Comissão Demarcadora das Fronteiras (séculos xix e xx),6 da Vigilância das Fronteiras (1917-1940), dos Planos de Operações na América do Sul (1934-1943), e da criação da Defesa Territorial Aérea (1938-1944).7

Silveira (2009) publicou, em período posterior, importante artigo, que atualizaria a discussão sobre a disputa de poder regional. No texto intitulado “A visão militar brasileira da Guerra do Chaco: projeção geopolítica e rivalidade internacional na América do Sul”, publicado na revista Antíteses, o autor enfatizou a tensão política existente entre o Brasil e a Argentina, no que chamou de rivalidade tradicional, e buscou examinar as formas pelas quais o serviço diplomático brasileiro e argentino intervieram na Guerra do Chaco (Silveira, 2009, p. 2). Sua investigação, entretanto, mantém-se articulada à análise dos documentos produzidos pelo Exército, que se encontram localizados no Arquivo Nacional. Como dissemos anteriormente, esses documentos fazem parte de uma coleção maior, guardada separadamente em duas diferentes instituições arquivísticas: o Arquivo Histórico do Exército e o Arquivo Nacional. Como parte de uma única coleção, a unificação desses documentos contribui no melhor entendimento acerca da visão dos militares sobre o conflito, assim como no reconhecimento da existência de um projeto político do Estado brasileiro para as fronteiras, um projeto que se apresenta muito maior do que a simples observação do conflito. Observação, vigilância, defesa e manutenção das fronteiras faziam parte desse projeto que contava com o interesse do governo federal através dos seus braços armados e diplomáticos.

A nossa discussão bibliográfica com relação à visão brasileira sobre a Guerra Boliviano-Paraguaia, e as tensões políticas regionais não se restringem ao livro de Silveira. Inserimos, nesse debate, também algumas obras e textos importantes selecionados a fim de compreender melhor esse conflito. Um dos livros que oferece informações relevantes acerca da temática intitula-se A paz do Chaco: como foi efetuada no campo de batalha, do general Estevão Leitão de Carvalho (1958). Essa obra foi produzida segundo o modelo da História Militar Tradicional, que se desenvolveu ao longo do século xix, junto com a historiografia positivista, valorizando a Guerra no contexto dos grandes temas da história política, como os estudos sobre o Estado, a formação territorial, o controle das fronteiras, e as relações diplomáticas.

A História Militar tradicional tem sido o campo de “militares historiadores”. Em geral, tem pouca acuidade metodológica, pois não resulta do trabalho de historiadores profissionais, mas de aficionados. Tende, portanto, à grandiloqüência e à adjetivação excessiva. É basicamente uma história descritiva e busca o ideal de apresentar “os fatos como aconteceram”. Em função dessas características, ficou conhecida depreciativamente nos Estados Unidos como “História-Batalha” ou História de “tambores e clarins”. Em função de sua origem não especializada e “corporativa”, tem clara tendência ao mito, ao enaltecimento de figuras históricas e a certa condescendência no julgamento dos fatos e protagonistas. (Pedrosa, 2011, p. 8)

Os eventos militares eram investigados de modo cientificista, através de estudo metódico, e valorizados na medida em que se legitimavam os interesses políticos do Estado. Os dois principais modelos historiográficos da História Militar foram elaborados pelo prussiano Karl von Clausewitz, no livro Da Guerra, principal tratado sobre o tema, e ainda muito discutido no campo das ciências humanas e sociais; e Leopoldo von Ranke, um dos fundadores da história científica alemã, cujo arcabouço teórico se baseava na História Narrativa ou historicismo, que apresentava os fatos históricos como eles realmente se passaram, e sua metodologia tinha como princípio a objetividade e neutralidade dos historiadores. Ranke “baseava-se principalmente nos documentos diplomáticos para fazer a história do Estado e de suas relações exteriores, pois acreditava que as relações diplomáticas determinavam as iniciativas internas do Estado” (Reis, 1996, p. 11).

Podemos destacar dois grandes temas da historiografia que foram construídos neste contexto e que se manifestam nos estudos militares do século xx: a História Batalha, formada a partir da busca de uma descrição precisa e de uma análise detalhada dos eventos militares propriamente ditos; e a História Militar, no contexto da História Política como é muitas vezes definitiva, e que pode remeter para a própria História Batalha em suas análises finais.

O livro do general Estevão Leitão de Carvalho (1958), publicado pela Biblioteca do Exército treze anos após seu afastamento das atividades militares, se enquadra perfeitamente nesse modelo historiográfico identificado como história militar tradicional.

O autor do livro participou como testemunha ocular do fato histórico, na condição de representante oficial do Brasil na Comissão Militar Neutra, encarregado de executar, no campo de batalha, as cláusulas de segurança do Protocolo de Paz, assinado em 12 de junho de 1935. A obra foi construída com base no desempenho de sua função militar-diplomática na região do conflito e nos entendimentos obtidos com as lideranças militares dos países envolvidos diretamente na guerra. Produzida treze anos após o seu afastamento das atividades militares regulares, teve como objetivo central construir um livro histórico sobre a guerra, que pudesse servir de fonte de estudo para os militares brasileiros. O interesse despertado pelas informações que obteve levou o autor a estender o período temporal de sua obra, na busca das origens do litígio e das etapas sucessivas pela qual passou, até o final da guerra. O livro é dividido em duas partes: a primeira trata da história do litígio, em que são estudadas as numerosas fases diplomáticas; e a segunda diz respeito aos fatos e comentários ligados à execução das cláusulas de segurança do Protocolo de 12 de junho de 1935 (Carvalho, 1958, prefácio).

Sobre o contexto do conflito, existem interpretações que discutem os fatores causais da guerra. Entre esses fatores podemos destacar a tese que defende o problema relacionado ao isolamento marítimo da Bolívia, que buscava uma saída para o mar. As tensões fronteiriças envolvendo a Bolívia fazem parte da história do desse país. Na guerra do Pacífico (1879-1883), conflito que envolveu o Chile, a Bolívia perdeu a região do litoral que lhe possibilitava acesso ao oceano Pacífico. Com o Brasil, a Bolívia teve importante disputa fronteiriça, em 1903,8 perdendo por venda a posse do Acre. Para o historiador boliviano Zavaleta (2008, p. 167), o tratado de paz com o Chile e com o Brasil foi firmado através da venda do território que se traduziu na obtenção de infraestrutura de ferrovias, sendo que o dinheiro foi para as mãos norte-americanas e chilenas. Após a derrota no Pacífico, os interesses bolivianos se voltaram para o rio Paraguai, que seria uma opção de ligação com o oceano Atlântico pela bacia do Prata.

Segundo Klein (2002, p. 194), no início do conflito, a opinião pública boliviana parecia estar convicta de que a guerra acontecera por motivos econômicos, ligados aos supostos campos petrolíferos, porém essa teoria não se comprovaria, pois até o final do conflito, as operações militares de guerra aconteceram a centenas de quilômetros do local onde estariam os poços mais próximos. Para o autor, a causa mais provável seria o isolamento geográfico boliviano e os problemas econômicos e políticos agravados pela grande crise de 1929, causada pela quebra da bolsa de Nova York.

Outra tese explicativa para as causas do conflito se refere às disputas territoriais entre as duas repúblicas beligerantes. Com a formação do Estado nacional, os limites territoriais não foram muito bem definidos, após várias tentativas, no século xix, de se encontrar uma solução para a questão. Tratados foram discutidos entre os dois países, sem sucesso. Para a professora titular de História da América, da Universidade de Barcelona, Dalla-Corte (2010), “El desarrollo ganadero acompañaba desde finales del siglo xix la explotación taninera en los grandes bosques chaqueños por parte de fuertes empresas nacionales y extranjeras que valorizaban la zona en litigio” (p. 29). A autora segue a linha de sua investigação enfatizando o contexto da Guerra dentro da formação do Estado, da Nação e da cidadania.

Segundo Carlos Mesa (2008, p. 127), os limites internacionais da Bolívia estavam baseados nos títulos coloniais herdados pelo país e reconhecidos internacionalmente. O governo da Bolívia apresentava suas alegações baseadas em documentos do período colonial, considerando que suas fronteiras incluíam todas as terras da antiga Audiência de Charcas, que era a mais alta autoridade jurídica e administrativa no sul do vice-reinado do Peru, durante os três séculos coloniais. É importante enfatizar que no livro Historia de Bolivia, os autores produziram uma história geral do país para atingir o grande público, para ser usado com fins divulgativos. O livro é uma construção histórica que privilegia os grandes heróis nacionais, e os grandes fatos históricos, se aproximando da história narrativa dos historiadores positivistas, que dominou a historiografia durante o século xix, e as primeiras décadas do século xx, associada à busca da verdade dos fatos, também identificada como história factual.

Nesse mesmo sentido, para o Paraguai, a principal tese defendida para as causas da guerra diz respeito às questões territoriais. Alegação pautada também, em documentos coloniais, afirmando que o Chaco pertencia à capital, Assunção. Demonstrando os dois lados da narrativa, Dalla-Corte (2010) coloca o seguinte:

La crónica ausencia de delimitación o demarcación del territorio entre la antigua provincia paraguaya con la Gobernación de Chiquitos y la Capitanía de Santa Cruz de La Sierra en la provincia altoperuana hizo que los gobiernos paraguayo y boliviano paltearan sus reclamos de dos maneras distintas: el primero alegó una cuestión de límites, defendió la unidad geográfica entre la región oriental y la occidental, y planteó una ocupación histórica desde tiempos inmemoriales; el segundo incorporó la tesis de la soberanía territorial en una zona indeterminada que le correspondía de derecho por herencia colonial (p. 31).

Essa última tese parece ser a mais convincente para as causas da guerra. As delimitações territoriais consistem em importantes fatores para os modernos Estados nacionais, pois em sua formação no século xix, a fronteira geopolítica traçada por delimitações espaciais era essencial, e fazia parte do discurso de legitimação das elites locais responsáveis pela formação da nação.

Um texto importante para esse debate, As políticas da Argentina e do Brasil em relação à disputa boliviano-paraguaia pelo Chaco (1926-1938) de Doratioto (2000). Define-se como um estudo mais analítico e menos factual, que faz parte da coletânea intitulada A visão do outro: Seminário Brasil-Argentina, publicada pela Fundação Alexandre de Gusmão (Brasil) e pela Fundación Centro de Estudos Brasileiros (Argentina), especializadas em publicações no campo diplomático, produto de quatro seminários realizados na Argentina, e no Brasil, no período de 1997 a 1999, no âmbito do projeto Argentina-Brasil a visão do outro. O texto analisa a evolução das tensões entre a Bolívia e o Paraguai, no século xix, até chegar à guerra no século xx. Doratioto (2000, p. 5), numa perspectiva política e economicista discute a disputa pela posse do território do Chaco Boreal, através das tensões nas disputas de definição das fronteiras, no contexto do processo de independência da América Espanhola, no século xix, e por conta das reservas de petróleo encontradas na região, no início do século xx.

Em um levantamento bibliográfico mais abrangente identificamos outras obras que estudam parcialmente a guerra entre a Bolívia e o Paraguai, ou artigos científicos que investigam o conflito como parte de suas pesquisas. É o caso do livro História das Relações Internacionais do Paraguai (Yegros e Brezzo, 2013) [no está en biblio] no qual os autores analisam a guerra nos capítulos quatro e cinco, de um total de seis capítulos, a partir do ponto de vista econômico e diplomático regional, no contexto de uma história geral mais ampla, que vai da independência do Paraguai à Guerra da Tríplice Aliança, passando pelas tensões políticas tradicionais entre o Brasil e Argentina, até a ditadura do presidente Stroessner.

Um artigo que merece uma leitura mais atenta é “A Guerra do Chaco”, do professor de Política Exterior do Brasil, Bandeira (1998), publicado na Revista Brasileira de Política Internacional. O texto realiza uma análise da guerra dentro de uma perspectiva economicista, em um contexto de construção e aprofundamento das tensões políticas entre Brasil e Argentina, legitimado pelas disputas comercial e produtiva extrativa/industrial da região, corroborando assim, com a investigação de Doratioto (2000), e Yegros e Rezzo (2013).

Com relação à análise dos documentos produzidos pelo Exército brasileiro, começamos nossa investigação pelo estudo sigiloso intitulado A Questão do Chaco Boreal, de 1934; e posteriormente, analisamos o relatório secreto Synthese das informações colhidas sobre a guerra boliviano-paraguaya, no Chaco Boreal, e seus antecedentes, de 1935. O objetivo foi tentar entender a produção desses dois corpus documental complementares, parte de uma coleção maior, que estão guardados no Arquivo Histórico do Exército, no contexto de produção de informações militares e diplomáticas de interesses estratégicos para tomada de decisões relacionadas à defesa nacional das fronteiras brasileiras.9 Documentos que foram produzidos sobre sigiloso de informação, com a intenção de limitar o acesso. Sigiloso ou secreto, essas fontes só poderiam ser manuseadas pelo alto escalão militar, pelo alto escalão diplomático, e por agentes públicos, no exercício de cargo, função, emprego ou atividade, que tinham a necessidade de conhecê-los. Os documentos objetivavam subsidiar a política nacional de segurança e defesa, pois sua divulgação ostensiva poderia colocar em risco a segurança da sociedade e do Estado.

Quando iniciou o conflito, em 1932, a seção de informações do Estado Maior do Exército redobrou esforços e procurou focalizar, principalmente, no aspecto militar, sem deixar de observar, no entanto, a situação diplomática internacional sul-americana. A seção observou, ainda, que, dentro daquele contexto inicial de tensão, os países beligerantes se enchiam de esperança em arrastar para guerra as principais potências da vizinhança, ou seja, Argentina e Brasil. Pela falta de adidos militares nos países em conflito, que são os agentes políticos-militares qualificados pela sua natureza técnica para colher informes, foi difícil obter informações mais precisas do teatro de operações, necessárias para produzir um documento mais verídico possível, que fundamentasse a decisão do Estado brasileiro em relação à defesa do território. Praticamente, todas as informações coletadas, e que serviram para subsidiar a produção desses dois documentos foram obtidas, com base no conhecimento histórico e geográfico existente em publicações (livros nacionais e jornais da época) e em documentos existentes nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Guerra.

A seção de informações (2ª Seção) do eme, desde 1928, acompanhava, com bastante interesse, dentro de uma política de vigilância das fronteiras, o desenvolvimento da questão do Chaco Boreal, em seus aspectos políticos, geográficos e militares, registrando esse acompanhamento em documentos secretos que serviam de subsídios para decisões políticas e militares do Estado. Na época do conflito, o general de divisão Waldomiro Castilho de Lima, inspetor do 1º Grupo de Regiões Militares, produziu o estudo sigiloso, sobre A Questão do Chaco Boreal, de março, de 1934, onde amplas dimensões da Guerra Boliviano-Paraguaia foram construídas, a partir da observação de quatro aspectos básicos registrados no documento. Dentre os aspectos observados podemos citar: os antecedentes históricos do conflito, os aspectos geográficos do Chaco, os antecedentes das negociações de paz antes do conflito, e o esboço das operações militares. O estudo procura atualizar a situação militar do Brasil, na região, e realiza comentários aprofundados sobre o conflito em andamento, no contexto dos interesses nacionais.

De início, na parte referente aos antecedentes históricos, o inspetor critica o sistema colonial espanhol, traça um quadro evolutivo da ocupação territorial, além de discutir as tensões envolvendo a relação entre colonizador e colonizado, para justificar a situação de crise política de disputa pelo Chaco, entre a Bolívia e o Paraguai, no pós-independência. O autor trata ainda, da reconstrução do Estado paraguaio após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), demonstrando como o país foi perturbado pela sequência de crises políticas, golpes de Estado e conflitos civis, nas últimas décadas do século xix. A reorganização do governo era, quase sempre, resultado de intervenções militares e revoluções de bastidores. O general Waldomiro observa que, no século xx cresceram as disputas com a Bolívia pelo controle do Chaco Boreal. Nesse contexto, os dois países iniciaram uma fase de construção de fortins na área em conflito. Após choques localizados, eclodiu a guerra entre a Bolívia e o Paraguai, e os paraguaios, comandados pelo coronel José Félix Estigarribia, venceram o conflito. O tratado de Paz de 1938, assinado por intermédio do Brasil, Argentina, Chile, Peru, Uruguai e Estados Unidos da América, deu ao Paraguai a maior parte do território disputado e à Bolívia uma saída para o rio Paraguai via Puerto Suárez.

O estudo sigiloso, de 1934, por sua extensão, profundidade das informações, detalhamento, e atualização em relação ao conflito, tem importante significado político-militar para os interesses e decisões do Estado brasileiro, pois constitui em representação da visão mais ampla e confiável, na época, apresentada pelo setor militar do Exército, de controle das fronteiras terrestres, apoiado pelo serviço de informação militar, com relação à questão geopolítica regional. Com relação à essa posição, os militares brasileiros sustentam nesse estudo, o seu temor com a tradicional disputa de poder regional, e avalia, com bastante preocupação, a hegemonia militar alcançada pela Argentina na América do Sul, no início do século xx.

Nos antecedentes históricos, o general Waldomiro expõe as teses dos dois países beligerantes, que justificariam o direito à posse da região contestada. Nessa parte, identificamos no estudo um ponto importante de discussão relacionado aos registros dos aspectos geopolíticos, sobre a Argentina e o Brasil, no contexto do conflito. Nesse caso, parece que o objetivo foi produzir subsídios sobre aspectos econômicos e militares, para efetuar análises comparativas entre os dois países considerados protagonistas desse cenário, no momento em que continuava uma tensa, mas disfarçada disputa pelo poder regional.

Sobre a Argentina destacamos no estudo sigiloso o maior interesse na produção de informações sobre os aspectos econômicos e comerciais, seguidos da avaliação dos aspectos geográficos e do debate da questão relacionada à influência militar da Argentina no Paraguai. O general Waldomiro destaca a presença de diversas empresas, fazendas e estabelecimentos comerciais argentinos, que ocuparam uma grande parte do território em litígio, sendo apoiados por interesses paraguaios, por conta dos investimentos e geração de empregos. Esse debate não era novo, pois em 1922, dentro do contexto da política de vigilância das fronteiras, o eme discutia sobre a cessão de terras nessas áreas, pelo estado do Mato Grosso, a empresas estrangeiras. O caso mais interessante é sobre a tensão envolvendo a venda de terras, em frente ao Forte de Coimbra, para a empresa argentina “Matte Laranjeira”, considerada pelos militares um obstáculo à defesa, pois além de ocupar vasta extensão de terras à margem esquerda do rio Paraguai, nos limites com a Bolívia e o Paraguai, numa área considerada de segurança nacional, a empresa só empregava em seus quadros funcionais argentinos e paraguaios.10

Com relação ao Brasil, o número de páginas produzidas no documento aumenta consideravelmente, levando em conta a dinâmica política do momento e os interesses em produzir informações que sustentariam as decisões do Estado. O estudo é constituído de informações do campo geopolítico (geografia e assuntos militares), das relações comerciais, e das relações diplomáticas. O inspetor destaca nos aspectos geográficos, as relações tensas nas fronteiras entre a Bolívia e o Paraguai, por conta da fragilidade nas definições e do reconhecimento internacional (Brasil, 1934, p. 12).

Realçamos, no estudo, a definição real da situação política do Brasil, em relação à Bolívia, e ao Paraguai. Essa definição é marcada pelo posicionamento pró-Bolívia, apesar de tentar marcar o discurso, com o tom da condição de neutralidade, que caberia aos países que não estavam envolvidos diretamente com a guerra. A Bolívia é tratada como aliada dos interesses diplomáticos relacionados à manutenção das fronteiras definidas e reconhecidas internacionalmente, além dos interesses comerciais existentes. O Paraguai aparece no texto como um potencial inimigo das questões de fronteiras, que, apesar do discurso fraternal divulgado, poderia facilmente mudar seu posicionamento, com relação aos limites consagrados pela diplomacia brasileira. O general Waldomiro cita o caso da imprensa de Assunção, e a circulação de informações obtidas nos livros didáticos adotados nas escolas paraguaias, contra o que poderíamos chamar de imperialismo brasileiro. Nas publicações escolares, o Brasil teria anexado parte do território paraguaio, após a guerra da Tríplice Aliança (Brasil, 1934, p. 13).

Outro ponto de tensão no estudo reforça a tese de disputa de poder regional, ao identificar a Argentina, junto com o Paraguai, como agentes de futuras complicações diplomáticas relacionadas, a uma provável invasão do território brasileiro do Mato Grosso (Brasil, 1934, p. 14). Para este caso, o autor utiliza como exemplo, a empresa Matte Laranjeira, localizada na região fronteiriça ao Paraguai, que empregaria um grande número de paraguaios, em condições de serem mobilizados pelo Exército de seu país de origem. Essa ação constituía assim, um grave ato atentatório à neutralidade brasileira e prejudicial às relações diplomáticas com a Bolívia. O general Waldomiro definiu a companhia de Matte Larangeira como empresa perigosa aos interesses da Defesa Nacional na região, no caso do surgimento de conflitos militares na fronteira oeste. O autor intensifica as críticas à empresa, ao identificá-la como apoiadora das revoltas internas brasileiras, de 1922 a 1932, contribuindo com os revoltosos, contra o governo federal, com auxílio financeiro e arregimentação de tropa (Brasil, 1934, p. 15).

O general Waldomiro aproveita o estudo e o momento político tenso para defender a reorganização das tropas brasileiras (Exército e Marinha) nas fronteiras oeste, principalmente, na área próxima ao conflito, por conta do que ele define como: “perigo de violação do nosso território pelas contigencias das operações entre os beligerantes” (Brasil, 1934, p. 18). Defende, também, o aumento do efetivo, o aumento do material empregado pela tropa (artilharia e aviação), e a criação de serviços especiais (aprovisionamento, saúde e transporte), que garantam a eficiência, a vigilância e impeçam que os beligerantes utilizem o território brasileiro como base de operações militares.

O autor conclui a primeira parte do estudo enfatizando a importância estratégica do Forte Coimbra na organização da defesa terrestre e manutenção da soberania nacional. Faz um propagandístico apelo para que o governo dê preferência ao melhoramento das condições de defesa, através da revisão do armamento utilizado, do aumento do efetivo, e da dotação de oficiais com melhor preparo profissional, mais adequado àquela realidade, de forma que possa reforçar o sistema de defesa, no rio Paraguai, executado pela guarnição do Forte (Brasil, 1934, p. 20). Essa passagem reflete bem os problemas relacionados à dificuldade no recompletamento de pessoal, em áreas de fronteiras inóspitas, consideradas localidades de difícil acesso para o poder público e para a sociedade que vive nas áreas mais desenvolvidas do litoral brasileiro. A precariedade do desenvolvimento urbano na região, o predomínio do aspecto rural, limitava a criação de estratégias de atração a todo tipo de funcionário público, da esfera federal, entre eles, os militares, que também se enquadravam nessa modalidade.

A segunda parte do estudo sigiloso faz parte de um extenso registro de informações sobre os aspectos geográficos do Chaco, relacionados com a identificação dos elementos naturais (planaltos, planícies, rios), que constituem o território em litígio, e ajudam a entender o processo de construção das fronteiras nacionais dos países sul-americanos. Na terceira parte, o estudo apresenta um levantamento histórico das negociações diplomáticas anteriores ao conflito, iniciando no ano de 1879, para demonstrar a fragilidade de todo o processo em andamento, e a incapacidade de resolver as tensões fronteiriças entre a Bolívia e o Paraguai. A quarta e última parte refere-se ao esboço das operações militares desenvolvidas no teatro de operações do Chaco Boreal. O autor, mais uma vez, demonstra uma posição pró-Bolívia, ao destacar o que considera como política de agressão violenta empreendida pelo Paraguai, na ocupação do território palco do conflito.

Como podemos observar, através do próximo documento que vamos analisar o eme, além de obter informações no estudo sigiloso de 1934, intensificou esforços necessários para melhorar sua interpretação, depois de cotejá-las meticulosamente, tendo como resultado, a produção do relatório secreto Synthese das informações colhidas sobre a guerra boliviano-paraguaya, no Chaco Boreal, e seus antecedentes. O relatório está dividido em duas partes: a primeira, feita com base no estudo sigiloso do ano de 1934, reúne aspectos políticos e geográficos da região do Chaco Boreal. Contém estudos dos pontos de vista fisiográfico e econômico, da área em disputa e analisa as possibilidades da guerra. Este documento, além de ser produzido no âmbito do eme foi difundido na Escola de Estado-Maior, em forma de conferências realizadas, com a proposta de levar conhecimento de casos concretos, que serviriam para apoiar a formação profissional dos oficiais do Exército. A segunda parte trata de aspectos da guerra.

A primeira parte do relatório é organizada em seis capítulos: resumo physiographico do Chaco Boreal; economia do Chaco; incidentes que precederam à guerra; as controvérsias de direito e a conquista pelas armas; e a situação militar dos contendores antes da guerra. Nas considerações expostas no documento, nos chamou a atenção, o fato de que a reconstituição da ordem de batalha e das fases de operações militares ficou cercada de mistério, demonstrando a habilidade dos beligerantes em deturpar as informações sobre os acontecimentos. Nessas condições, o que fica consagrado não é o caráter de infalibilidade, mas o de descrever, de um modo geral e lógico, como se desdobraram as operações através do teatro de operações do Chaco.

Em uma das observações registradas no relatório secreto, de 1935, o documento afirma que o centro de tensão entre os dois países (Bolívia e Paraguai), caracterizado por um litígio territorial, vinha se agravando com o tempo, e era evidente que cada um deles esperava o momento propício para apoiar pelas armas as suas pretensões bélicas de conquista do território. A política internacional mantida pelos dois Estados rivais da América do Sul conseguiu, em diversas ocasiões, adiar o início das hostilidades, apesar dos pequenos conflitos surgidos com a ocupação de fortins, que nada mais eram do que marcos da penetração realizada, paulatinamente, por paraguaios e bolivianos. Um ponto de tensão observado no relatório brasileiro foi o de que o apoio prometido pelos países vizinhos, que tinham interesses no território contestado, também era incerto. Registrou-se que, na Argentina, a política do governo de Hipólito Irigoyen conseguiu frear, durante um tempo, os impulsos paraguaios, mas que esta ação não foi suficiente para evitar o início das hostilidades e do conflito. Apesar da neutralidade brasileira, as tensões no discurso aumentam quando avança nos registros sobre as críticas envolvendo o Paraguai e a Bolívia. Segundo o relator, complicações na política interna dos dois países, principalmente do Paraguai, adiaram, várias vezes, o início das hostilidades. Era evidente, no entanto, que esta guerra algum dia seria desencadeada, pois as convenções e tratados firmados entre as duas partes interessadas, depois de penosas negociações, nunca foram ratificados pelos paraguaios (Brasil, 1935, p. 3).

A segunda parte do relatório foi organizada em oito capítulos, que tratam dos seguintes assuntos: organização do Exército paraguaio de campanha: mobilização paraguaia, linhas de comunicações paraguaias; organização do Exército boliviano de campanha: linhas de comunicações boliviana; síntese da política internacional sul-americana em face da Guerra Boliviano-Paraguaia: situação do Brasil; teatro de operações do Chaco; valor dos combatentes; processos de combate; desenvolvimento das operações; e previsões sobre a terminação da guerra: suas consequências, ocupação de fortins paraguaios por forças argentinas, desvio do curso do Pilcomayo, e destacamento argentino da fronteira do Pilcomayo. Refere-se à aspectos da guerra propriamente dita e aos melhores subsídios que a seção de informações havia conseguido reunir em fins do ano de 1934. Na produção dessa parte do relatório houve a participação, do 1º tenente da Arma de Cavalaria Nemo Canabarro Lucas, que após ser expulso do Exército brasileiro, em 1932 integrou as tropas paraguaias durante quatorze meses, participando ativamente do conflito entre os anos de 1932 e 1934. Depois de anistiado em 1934, e reincorporado no Exército brasileiro, o oficial trouxe importantes observações do conflito uma vez que ele atuou diretamente no campo de batalha. O tom elogioso no relatório do Exército, na parte da apresentação do documento, tratando das ações de Canabarro, na sua participação ao lado do Exército paraguaio, deixam transparecer o esquecimento em relação às suas atividades anteriores, consideradas, então, ilegais, e que levaram a sua inevitável expulsão.

Já no momento de instalação dos serviços de Adidos Militares, em Assunção e em La Paz, foram obtidas mais informações úteis para a construção da segunda parte do relatório. No entanto, é importante frisar que esses oficiais chegaram tardiamente a seus postos de observação e, apesar de sua intensa atividade, só conseguiram alcançar as fases finais do conflito, não participando em momentos importantes das operações militares. No território charquenho, diziam os adidos militares, onde se batiam os exércitos, seria necessário esquecer os ensinamentos recebidos nas escolas militares, ao pisar o terreno do conflito. A informação é interessante porque mostra a necessidade de improvisações e processos especiais de combate para aqueles que lutavam naquela região inóspita, palco de terrenos pantanosos. Daí as maiores dificuldades para os que tentavam descrever metodicamente os conflitos militares entre bolivianos e paraguaios.

Na perspectiva desses documentos, assumia relevância o posicionamento do meio militar brasileiro, quanto à guerra e no tocante aos interesses políticos nacionais. Podemos destacar a influência da geopolítica na interpretação feita pelo Alto Comando do Exército brasileiro sobre o conflito, quando identificam os problemas da guerra, integrado no contexto das tensões políticas da América do Sul e sinalizam para repercussões potenciais, em relação à segurança e projeção de poder regional.

Com o fim da guerra, em 1935, temos início aos debates diplomáticos que definiram a posição de cada ator político nesse evento, a divisão do território em litígio, e posteriormente, a confecção do Tratado de Paz, Amizade e Limites, assinado em 1938. A Conferência de Paz decidiu, em um último esforço para alcançar uma solução para o processo de mediação, convidar os ministros das Relações Exteriores da Bolívia e do Paraguai para irem a Buenos Aires negociarem a questão. Depois de muitas idas e vindas, e muitas tensões, no dia 21 de julho de 1938, após três anos de conversações de paz iniciada em território argentino (cidade de Buenos Aires), o Tratado de Paz, Amizade e Limites foi assinado entre os governos da Bolívia e do Paraguai, na presença do presidente da Argentina, Roberto M. Ortiz. Esse tratado foi submetido à arbitragem dos presidentes da Argentina, Brasil, Chile, Peru, Uruguai e Estados Unidos (Aguilera, 2011, p. 4), para decidirem a disputa de uma faixa de terra de 41 500 km quadrados, que se estendia do rio Pilcomayo até o rio Paraguai, na altura que ocupavam os exércitos beligerantes ao término do conflito. O tratado estabeleceu a paz entre Bolívia e Paraguai (artigo 1º) e fixou uma linha divisória no Chaco.

A sentença da arbitragem fixou a linha divisória norte no Chaco, na zona compreendida entre a linha da Conferência de Paz, apresentada em 27 de maio de 1938, e a linha da contraproposta paraguaia, apresentada a Conferência de Paz em 24 de junho de 1938, desde o meridiano do Forttín 27 de Noviembre, mais ou menos na posição do meridiano 61º 55’, a oeste de Greenwich, até o limite oriental da área, excluindo o litoral sobre o rio Paraguai ao sul da boca do rio Otuquis ou Negro. Conforme previsto no artigo segundo do Tratado de 21 de julho de 1938, o tribunal arbitral proferiu o seu acórdão em 10 de outubro do mesmo ano. O tribunal arbitral, em resposta a demanda da delegação paraguaia, sentenciou que os fortins Patria e Galpón, assim como Yrendague, ficaram dentro da jurisdição paraguaia. Em 13 de outubro o governo boliviano informou ao tribunal arbitral que acatava o laudo, e o governo paraguaio fez o mesmo, em 20 de outubro. Em 25 de novembro foi constituída uma Comissão Mista encarregada da demarcação, e em 28 de dezembro teve lugar na cidade de Villa Montes a solenidade de entrega e tomada de posse do território distribuído a cada uma das partes envolvidas no conflito.

O território submetido à arbitragem internacional foi distribuído da seguinte forma: o Paraguai obteve 31.500 km quadrados, e a Bolívia recebeu 14 678 km quadrados. O resultado desta decisão arbitral está sujeita a interpretações diferentes, de acordo com a origem boliviana ou paraguaia das fontes. Se tomarmos a interpretação do lado boliviano, mais prejudicado com as decisões, como foi o caso da obra do historiador Querejazu Calvo (1965, p. 473), o Paraguai ficou como dono de quase todo território disputado, enquanto que a demanda portuária boliviana foi contemplada com a concessão de uma parte de terra que penetra até o rio Paraguai na zona inundada de seu afluente Otuquis. Calvo foi historiador e diplomata pelo Departamento de Chuquisaca. Foi soldado pelo Exército boliviano e combateu na Guerra do Chaco. O seu livro Historia de la guerra del Chaco é considerado uma das grandes contribuições da historiografia nacional boliviana. No livro ele narra os acontecimentos diplomáticos, políticos e militares, numa narrativa linear. Se tomarmos por base os autores do lado paraguaio, que seguem também, a historiografia tradicional, com certeza a sua narrativa confirmaria a vantagem nas decisões arbitrais, como foi o caso da obra do advogado e doutor em Direito Salum-Flecha (1983, p. 192), que defende do ponto de vista diplomático e jurídico as decisões arbitrais favoráveis ao Paraguai seu país de origem.

Com relação à interpretação do processo de paz na região seria importante ainda, fazer a leitura do artigo “A Guerra do Chaco e as relações brasileiro-bolivianas no período 1930-1945. Um caso de reorientação da política externa do Brasil”, de Léon E. Bieber, publicado na Revista Ibero-Amerikanisches Archiv, em 1996, do artigo “Contribuição do Brasil na Paz do Chaco”, do general Estevão Leitão de Carvalho, publicado na Revista Anhembi, em 1960,11 do clássico “A política exterior do Brasil”, de Jayme de Barros, publicado em 1943. No entanto, em nossa investigação preferimos utilizar o artigo “La Guerra del Chaco como desafio al panamericanismo: el sinuoso camino a la Conferencia de Paz de Buenos Aires, 1934-1935”, do historiador Óscar Javier Barrera Aguilera, publicado em 2011, por ser mais atual e representar uma excelente avaliação crítica da eficácia no processo de paz. Pesquisa realizada com base em documentos diplomáticos da Secretaría de Relaciones Exteriores, localizados no Archivo Histórico Genaro Estrada (México), o texto revela que as negociações em torno da Guerra do Chaco catalisaram antigas tensões regionais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em pesquisas anteriores, sobre a relação do Estado brasileiro com a construção das fronteiras Norte e Centro-Oeste, podemos demonstrar como os militares brasileiros desde a segunda metade do século xix, foram responsáveis pela intervenção direta na região, considerando, para este propósito, a ocupação territorial, o controle sobre a população local, e a participação na construção dos limites com as nações sul-americanas. Podemos evidenciar, também, que o Estado brasileiro utilizou-se do Exército e da Diplomacia, como principais agentes executores desse processo interventor de ocupação do interior do Brasil.

Ao estudar os conflitos regionais contemporâneos da América do Sul, na década de 1930, especificamente a Guerra Boliviano-Paraguaia, no Chaco Boreal, a partir de interesses geopolíticos regionais, ampliamos nossa discussão historiográfica anterior e confirmamos as tensões políticas que se estabeleceram devido à rivalidade tradicional na região e a conseguinte disputa pelo poder na América do Sul.

O resultado dessa pesquisa abre espaço para discutir no campo político nacional e internacional os interesses militares de intervenção do Estado nas fronteiras, nos conflitos armados e na própria diplomacia como forma de relação do poder. Além disso, com esta investigação científica, podemos contribuir para o desenvolvimento de uma análise historiográfica e metodológica mais plural e inovadora, ao colocar na pauta da discussão os questionamentos político-militares característicos da História, contribuindo para compreensão da política intervencionista dos Estados. Reconhecemos o surgimento de novas áreas de conhecimento acerca deste conflito e das zonas fronteiriças que o circundam, assim como dos seus impactos na estruturação das ações de ocupação e das relações entre os agentes envolvidos no processo. Identificamos ainda, as possibilidades de interface entre a história social das fronteiras e a história dos conflitos armados com as suas dimensões na política, na sociedade, na economia, e na cultura.

 

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1                      Por Primeira República, consideramos o período que vai de 1889, com a Proclamação da República no Brasil, até 1930, com a Revolução de Getúlio Vargas. O termo é utilizado desde 1989, ano da comemoração do centenário da República, quando as pesquisadoras Ângela de Castro Gomes e Marieta de Moraes Ferreira publicaram o estudoPrimeira República: um balanço historiográfico”, na Revista de Estudos Históricos, da Fundação Getúlio Vargas.

2                      Apud Freitas (2004). Para Miyamoto e Gonçalves (1995), a primeira fase da evolução do pensamento geopolítico brasileiro abrange os estudos pioneiros realizados nas décadas de 1920 e 1930; a segunda fase coincide com a segunda guerra mundial; a terceira fase coincide com o surgimento da Escola Superior de Guerra; a quarta fase inicia-se com a Revolução de 1964; e a quinta e última fase corresponde aos anos de 1980 e 1990 (p. 13).

3                      A escola possibilista foi criada por Paul Vidal de la Blanche, e acreditava na possibilidade de haver influência de reciprocidade entre o homem e a natureza, e não acreditava no determinismo ambiental preconizado por Ratzel. Blanche (1896, p. 122-142).

4                      A teoria do poder terrestre postula, na sua essência, que a concorrência pela hegemonia mundial, entre grandes potências, pode-se resumir a uma rivalidade histórica entre dois polos antagônicos, o poder marítimo e o poder terrestre. Em termos de estratégia mundial de poder, isso significava que caso o poder terrestre pudesse obter uma frente oceânica poderia ser capaz de desenvolver um poder anfíbio que lhe possibilitaria concorrer com o poder marítimo, simbolizado na época de Mackinder pela Inglaterra. No cerne da reflexão de Mackinder se encontraria a possibilidade de que o poder marítimo inglês viesse a ser suplantado pelo poder terrestre russo-alemão. As hipóteses que tanto preocupavam o geógrafo inglês não se sustentaram. Como argumenta Raymond Aron (1986) em Paz e guerra entre as Nações, durante a primeira e a segunda guerra mundial houve, ao contrário do sustentado pela teoria do poder terrestre, a aliança de poderes terrestres e marítimos para vencer poderes de igual natureza geográfica. Ademais, o fim da guerra fria mostrou a vitória do poder marítimo americano sobre o poder terrestre soviético.

5                      O pensamento ratzeliano se sustenta na relação entre a rede geográfica (circulação e comunicação) e o valor das vantagens da situação territorial. Ratzel (1882).

6                      Disponível em http://scdl.itamaraty.gov.br/pt-br/fronteiras_e_limites_do_brasil.xml. Acesso 26/02/2018.

7                      Vale ressaltar que as três últimas coleções se encontram depositadas no Arquivo Histórico do Exército, e a primeira, que pertence ao Ministério das Relações Exteriores está quase toda digitalizada e disponível na internet.

8                      Para Carlos Mesa (2008, p. 417), o conflito militar do Acre teve seu ponto mais tenso entre 1900 e 1903, e a origem da guerra estaria nas disputas de limites com o Brasil, e na importância econômica da borracha na região.

9                      Conforme item 16, do artigo 34, da Constituição Federal do Brasil, de 1889, cabia ao governo federal tratar da segurança das fronteiras. Esse texto foi incluído pela Emenda Constitucional de 03 de setembro de 1926. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso 25/02/2018.

10                    Ofício nº 113-reservado, da 2ª seção da 1ª Circunscrição Militar, ao eme. Rio de Janeiro: eme, 1922. Arquivo Histórico do Exército (ahex), Brasil.

11                    Para realizar essa discussão foi mais importante o livro A paz do Chaco: como foi efetuada no campo de batalha, de 1958, mais completo do que o artigo de 1960, que foi apenas um resumo do clássico.