10.18234/secuencia.v0i107.1700
Artículos
Livros científicos,
saberes ilustrados e condutas “sediciosas” de leitura na livraria do cônego
Luís Vieira da Silva (Minas Gerais, Brasil, 1789)
Scientific Books, Illustrated Knowledge and Reading Seditious Conduct in the Luís Vieira da Silva Canon’s
Library (Minas Gerais, Brazil, 1789)
André
Figueiredo Rodrigues1, 0000-0001-9286-089X
1Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (UNESP), Campus de Assis, São
Paulo, Brasil, andre.f.rodrigues@unesp.br
Resumo:
O artigo analisa a presença de livros com temas relacionados à ciência e
aos saberes ilustrados na livraria do cônego Luís Vieira da Silva, um dos
implicados na Inconfidência Mineira de 1789. No contexto se discutem a relação
de seus livros, os saberes locais e algumas práticas “sediciosas” de leitura,
proporcionadas pelas ideias revolucionárias que circulavam em Minas Gerais na
segunda metade do século XVIII, vindas da Europa e
da América do Norte.
Palavras-chave: livros científicos; práticas
de leitura; sequestro-livros; Inconfidência Mineira.
Abstract:
The article analyzes the presence of books with themes related to
Science and the illustrated knowledge in the library of the canon Luís Vieira da Silva, one of those implicated in the Inconfidência Mineira of 1789. In
the context discusses the relation of his books, local bodies of knowledge and
some “seditious” reading practices, provided by the revolutionary ideas that
circulated in Minas Gerais in the second half of the
eighteenth century, coming from Europe and North America.
Keyword: scientific books;
reading practices; seizure-books; Inconfidência Mineira.
Resumen: El artículo analiza la presencia de libros con temas
relacionados con la ciencia y el conocimiento ilustrados en la biblioteca del
canónigo Luís Vieira da Silva, uno de los involucrados en la Inconfidência Mineira de 1789. En
el contexto, se discute la relación de sus libros, el conocimiento local y
algunas prácticas de lectura “sediciosas”, proporcionadas por las ideas
revolucionarias que circularon en Minas Gerais en la segunda mitad del siglo XVIII, procedentes de Europa y América del Norte.
Palabras
clave: libros científicos; prácticas
de lectura; incautación-libros;
Inconfidência Mineira.
Recibido: 10 de enero de 2019
Aceptado: 2 de septiembre de 2019
Publicado: 11 de mayo de 2020
INTRODUÇÃO
As relações de obras
de uma livraria são uma das fontes mais significativas para se estudar a posse
de livros e as suas possíveis evidências de leitura. Estes inventários, como
ferramenta de análise histórica, permitem desvendar a existência de uma cultura
livresca em uma determinada sociedade e época, como revelar práticas e maneiras
de apropriação das ideias ali contidas ou pelo menos uma intenção ou indício de
leitura. Também nos possibilita estudar as redes de comunicação e de comércio
que vão do autor ao público leitor, passando pelo editor, ou livreiro, ou
impressor, ou distribuidor, ou vendedor, em um amplo circuito de interrelações econômicas, sociais, políticas e culturais (Chartier, 1990, p. 121; Darnton,
1990; Villalta, 2015, p. 17).
No Brasil, nos últimos vinte anos, a reconstrução da história do livro e
da leitura no período colonial (de 1500 a 1808) foram realizados por estudiosos
de diversas áreas do conhecimento que em suas pesquisas debruçaram-se sobre os
usos de variadas fontes interdisciplinares e diversos procedimentos
metodológicos,1 como ao se analisar os
sequestros de bens materiais de uma pessoa presa e os inventários pós-morte,
que ajudaram a evidenciar obras encontradas em bibliotecas privadas; ou os
catálogos de livrarias; as operações de compra e venda de livros; os processos
e denúncias feitas aos comissários do Santo Ofício, que se aprimoraram na
localização de obras proibidas nas bibliotecas coloniais; e as listagens de
obras circuladas quando uma pessoa viajava com livros.2
Apesar dos avanços vislumbrados, aonde bibliotecas de indivíduos
particulares, de grupos ou de instituições vêm sendo minuciosamente analisados,
muito ainda está por ser estudado. Assim, o que pretendemos neste artigo é
abordar a presença de livros com temas relacionados à ciência e aos saberes
ilustrados presentes na livraria apreendida ao cônego Luís Vieira da Silva, em
1789, na cidade de Mariana, no interior de Minas Gerais, Brasil. Antes, porém,
apresentamos um breve panorama da historiografia do livro nas Minas Gerais
colonial e a biblioteca deste religioso como tema de estudos e pesquisas. Na
sequência, adentramos em sua livraria, reconstruindo seus títulos e autores,
assim como a análise temática das obras científicas que lá se encontravam,
para, por último, aproximar seus conteúdos às transformações que se viviam nas
Minas Gerais do final do século XVIII, em relação
às ideias ilustradas que circulavam no lado europeu do Atlântico.
A LIVRARIA DO CÔNEGO LUÍS
VIEIRA E A HISTORIOGRAFIA DO LIVRO NAS MINAS GERAIS COLONIAL
A historiografia do livro em Minas Gerais é tributária
dos estudos que, de início, procuraram avaliar os livros como objetos que
comprovem a existência de uma cultura livresca no século XVIII.
Na época, a região, por conhecer certa sofisticação, com o produzir da primeira
consciência artística do Brasil –o barroco–, em criatividade e harmonia com a
escultura, a pintura, a música e a arquitetura, incrementada com notas
próprias; e ao “desenvolvimento” oportunizado pela exploração do ouro,
proporcionou –relacionando-se às letras– que membros das camadas proprietárias
tivessem acesso a textos e à efervescência produzida pela Ilustração e pelas
transformações políticas que variam a Europa e a América do Norte na segunda
metade daquele século. Tais transformações estimularam debates e contestações,
assim como suscitaram receios do desmantelamento da ordem, fosse ela social,
religiosa, cultural ou política. E os livros surgem como um dos elementos para
isto (Rodrigues, 2002, pp. 20-21; Villalta, 2007a,
vol. 2, p. 251).
Em 1901, ao conduzir a transcrição e a publicação de uma série de
documentos da Inconfidência Mineira (1789), movimento que pretendia libertar a
capitania de Minas Gerais da exploração econômica sofrida de Portugal,
Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo divulgou o escrutínio dos livros que
compunham a livraria do cônego Luís Vieira. (Seqüestro,
1901, pp. 159-160) Este ato inaugurou –por assim
dizer– a historiografia do livro nas Minas Gerais setecentistas (Rodrigues,
2010, pp. 38-39).
Na sequência, em 1945, Eduardo Frieiro (1981,
pp. 18-22) examinou pioneiramente esse catálogo no primeiro ensaio de seu livro
O diabo na livraria do cônego, ao tecer breves
notas de alguns dos títulos ali encontrados e a sua relação com as ideias
europeias setecentistas, sem, contudo, examinar pormenorizadamente as obras
relativas às ciências.
Dedicando-se ao estudo das bibliotecas existentes nas Minas Gerais
setecentista, Sílvio Gabriel Diniz, em 1959, publicou estudo sobre as suas
composições e quem eram os seus proprietários. Neste mesmo ano, também trouxe a
público artigo sobre o comércio e a circulação de livros na cidade de Vila Rica
(Diniz, 1959a, pp. 333-344; 1959b, pp. 180-195).
Em 1964, E. Bradford Burns estudou a relação dos livros do acervo da
Biblioteca Municipal de São João del-Rei, organizada
em 1824 a partir das obras que pertenceram aos inconfidentes José de Resende
Costa, pai e filho, e ao político João Baptista Caetano de Almeida, da primeira
metade do século XIX (Burns, 1964, pp. 430-438).
Após mais de duas décadas e procurando identificar práticas de leitura e
a presença de livros de conteúdo ilustrado, revolucionário e herético em
bibliotecas particulares, Paulo Gomes Leite (1995, pp. 153-166; 2001, pp.
217-226) publicou alguns artigos em que analisa o acervo bibliográfico
pertencente ao advogado José Pereira Ribeiro, morador de Vila Rica e amigo do
cônego Luís Vieira, com quem compartilhava livros e ideias sediciosas.
Guiando-se por semelhante percurso analítico, Luiz Carlos Villalta (1997, pp. 331-385; 2007b, pp. 289-311; 2007c, pp.
579-607; 2015; Villalta y Becho,
2007, pp. 555-579), do mestrado ao doutorado, passando por vários capítulos e
artigos de periódico, empreendeu análise sobre os usos dos livros no mundo
luso-brasileiro, destacando suas práticas de leitura, os usos que lhes foram
atribuídos pelos leitores e a composição das bibliotecas e livrarias
apreendidas aos inconfidentes. E dentro de seus estudos, a figura de Luís
Vieira da Silva aparece referenciada e amplamente discutida.
A partir dos anos 2000, no âmbito da pós-graduação, o avançar de
pesquisas sobre o universo livresco mineiro colonial, com a ampliação do
repertório de fontes e dos procedimentos quantitativos e metodológicos,
possibilitou encontrar e reconstituir, com mais precisão, o escrutínio de
bibliotecas particulares e institucionais.3
Por ser a relação de autores e títulos surgidos a partir de então muito
extensa, e por este não ser o foco deste artigo, limitamo-nos a apenas informar
dois destes textos que tiveram o cônego Luís Vieira como personagem. Rafael de
Freitas e Souza e Júnia Ferreira Furtado com Heloísa Murgel
Starling empreenderam análises sobre as múltiplas
interpretações que os textos constitucionais norte-americanos, reunidos sob o
título de Recueil des loix constitutives des colonies angloises, confédérées sous la dénomination d’États-Unis de l’Amérique-Septentrionale
(Coleção das leis constitutivas das colônias inglesas
confederadas sob o nome de Estados Unidos da América Setentrional,
1778), exerceram sobre os inconfidentes e, dentre eles, o cônego Luís Vieira
(Furtado y Starling, 2013, pp. 107-132; Souza, 2008).
AS OBRAS CIENTÍFICAS NA
LIVRARIA DO CÔNEGO LUÍS VIEIRA DA SILVA
Da biografia de Luís Vieira da Silva sabe-se que
nasceu em Soledade, atual Lobo Leite, em Minas Gerais. Não se conhece a data de
seu nascimento, apenas que foi batizado na paróquia de Congonhas do Campo, em
21 de fevereiro de 1735. Era filho do alferes português Luís Vieira Passos, que
vivia da lavoura e de seu ofício de carpinteiro, e da portuguesa Josefa Maria
do Espírito Santo. Eles se casaram no Brasil em 18 de novembro de 1733 e viviam
na fazenda do Guido, em Soledade (Jardim, 1989, p. 277).
Em 17 de agosto de 1750, matriculou-se no Seminário de Nossa Senhora da
Boa Morte, em Mariana. Ali permaneceu por dois anos, até que, em dezembro de
1752, seguiu para o Colégio dos Jesuítas, em São Paulo, para cursar filosofia e
teologia moral. Concluiu os estudos em 1757 (Trindade, 1953, vol. 1, pp.
61-67). Regressou a Mariana e assumiu, “antes de ser ordenado, o cargo de
professor de Filosofia do seminário, cadeira que ocuparia por 32 anos, até ser
preso em 1789”. Ordenou-se padre da arquidiocese de Mariana em 23 de março de
1759. Em 24 de março de 1783 tomou posse como cônego (Jardim, 1989, pp.
277-279).
Foi nos trinta e dois anos como professor do seminário de Mariana que
Luís Vieira constituiu a livraria que lhe foi sequestrada e que aparece
minuciosamente descrita no processo-crime denominado Autos de Devassa, aberto
para julgar e punir os envolvidos no movimento rebelde de 1789, a Inconfidência
Mineira.
Em 22 de junho de 1789, no mesmo dia de sua prisão, procedeu-se ao
sequestro de seus bens materiais. Foram apreendidos móveis, roupas, um escravo
de nome Cipriano, dois cavalos, utensílios domésticos, uma luneta e treze mapas
emoldurados em jacarandá preto torneado. Mas, de seu patrimônio, o que
impressiona é a riqueza com que o escrivão José Luís França Lira descreveu os
livros que estavam armazenados em “duas estantes de pau”. Havia, também, “uma
mesa de madeira branca lisa com gaveta” para leitura e escrita. Provavelmente
era sobre esta escrivaninha que ficava a tesoura –também apreendida– que
utilizava para cortar papel e abrir as páginas laterais e superiores de seus
livros, já que os seus formatos correspondiam ao número de vezes que se dobrava
uma folha para formar um caderno e que este deveria ser cortado para poder ser
manuseado e lido.4
A lista de seus livros, com a indicação de seu formato e aparência,
indica 267 títulos distribuídos em 569 volumes.5
Mas, como informado por Eduardo Frieiro, pioneiro no
estudo desta biblioteca, “o melhor [...] não estava na quantidade, mas na
qualidade das obras reunidas”, mostrando uma boa diversificação temática, que
cobria de assuntos religiosos aos políticos, além de apresentar uma excelente
seleção de autores e marcante atualidade (Frieiro,
1981, p. 24; Rodrigues, 2017, p. 13).
Apesar de poucos títulos, a quantidade de livros apreendidos ao cônego
Luís Vieira impressiona no contexto das bibliotecas existentes na cidade de
Mariana. Luiz Villalta (2015, pp. 358, 376; 2007b,
vol. 2, pp. 292, 302), um dos mais importantes estudiosos da posse e dos usos
dos livros no mundo luso-brasileiro sob o Reformismo ilustrado português, ao
examinar 911 inventários de leigos e clérigos existentes no Cartório do 2º
Ofício da cidade de Mariana, de 1714 a 1822, descobriu a existência de 76
bibliotecas ali instaladas e um montante de 1 253 obras, em um total de 2 031
volumes.
Na composição das livrarias, de acordo com Luiz Villalta
(2015; 2007b), os religiosos formavam a categoria, em termos numéricos, “mais
expressiva dentre os proprietários de livros”. “De um total de 37 clérigos
inventariados, 22 possuíam livros, o que corresponde a 59.45% do número de
padres, 28.94% do conjunto de inventários com livros.”
A maior biblioteca pertencia ao doutor José Pereira Ribeiro, advogado e também
citado nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, com 211 títulos em 476
volumes. Em segundo lugar estava a livraria do padre Manuel da Cunha Osório,
“professor do colégio do Sumidouro, termo de Mariana”, com 125 títulos. Na
terceira colocação encontrava-se a biblioteca do coronel João Batista de
Figueiredo Leitão com 73 títulos em 125 volumes. Na quarta posição, empatados
com 64 títulos cada um, estavam as livrarias do padre Francisco Soares
Bernardes, com seus 130 tomos, e a do advogado Jacinto de Figueiredo Vieira de
Andrade, com 162 volumes (pp. 359, 376; vol. 2, p. 302).
Esses números são distintos dos apurados em outras bibliotecas
existentes naquele local e arrolados em outra tipologia documental: os Autos de
Devassa da Inconfidência Mineira, que nos permitem vislumbrar que dentre os
presos por participação no movimento rebelde de 1789, o cônego Luís Vieira era
o que detinha a maior livraria (267 títulos em 569 volumes). Dos demais
clérigos envolvidos na Inconfidência Mineira, em número de cinco, apenas dois
deles tiveram livros apreendidos: o padre Manuel Rodrigues da Costa com 75
títulos em 210 volumes e o padre Carlos Correia de Toledo com 60 obras em 104
volumes. Por exemplo, a livraria do bispo de Mariana à época da Inconfidência,
dom frei Domingos da Encarnação Pontevel,
falecido em 1793, continha 412 títulos e 1 056 volumes. Já o português dom frei Manuel da Cruz, primeiro bispo de Mariana e responsável
pela cerimônia de ordenação de Luís Vieira às ordens sacras, tinha 36 títulos
distribuídos em 79 volumes, quando de sua morte ocorrida em 1764 (Villalta, 2007b, vol. 2, p. 306).
Esses dados ilustram o quanto era representativa a biblioteca do cônego
Luís Vieira: a segunda maior da cidade de Mariana, encontrando-se ali uma boa
diversificação temática, com assuntos como religião, filosofia, jurisprudência,
literatura, ciências e conhecimentos úteis, do antigo ao moderno, “sensível às
inovações que ocorriam nas ideias científicas, políticas e filosóficas” da
Europa da segunda metade do século XVIII. Os
melhores clássicos da cultura ocidental estavam presentes, como Anacreonte,
Catulo, Cícero, Demóstenes, Horácio, Júlio César, Ovídio, Petrônio, Quintiliano, Sêneca, Suetônio e
Virgílio; assim como escritores modernos como Luís de Camões, Corneille, Francisco Sá de Miranda, Pietro Metastásio, François Fénelon,
Racine e John Milton. Livros de autores da Ilustração como o espanhol
divulgador de ideias francesas padre Benito Jerónimo Feijoo,
Condillac, David Hume, Denis Diderot, Antonio Genovesi, Marmontel, Mably, Bielfeld, Bossuet, Montesquieu,
Luís Antônio Verney, Voltaire e William Robertson
também estavam ali. Mas, no todo, não havia livros específicos sobre o Brasil (Frieiro, 1981, pp. 24, 29-30; Rodrigues, 2017, p. 13; Villalta, 1997, p. 364).
No escrutínio prevalecia títulos religiosos –liturgia, história sagrada,
cânones, devoção, teologia, dicionários eclesiásticos e história eclesiástica–,
muito em virtude de sua atuação profissional. Lá estavam os doutores da Igreja:
Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo e São Gregório; e obras de
pensadores afinados com a ortodoxia clerical como São Bernardo, Carlos Joaquim Colbert e Petrus Collet (Frieiro, 1981, p. 26; Villalta, 1997, p. 364).
Para um professor de filosofia não podia faltar obras de lógica,
metafísica e filosofia, como a Summa theologica (Suma teológica) de São Tomás de Aquino, os Éléments
de métaphysique sacré et
profane (Elementos de metafísica sacra e profana)
do padre jesuíta François Para du Phanjas,
Disputationes metaphysicae (Disputações metafísicas) do padre jesuíta Silvestre Aranha, a Metaphysica (Metafísica) e a Lógica de Antonio Genovesi, o Compendium
philosophicum theologicum
(Compêndio teológico e filosófico) de Manuel Inácio
Coutinho e a Encyclopédie
(Enciclopédia) de Denis Diderot e Jean d’Alembert.
Já no tocante às obras científicas e de conhecimentos úteis, estas se
faziam presentes em boa quantidade: 45 títulos em 109 volumes.6 De medicina se destacam
os quatro volumes in-octavo da Exposition anatomique de la structure du
corps humain (Exposição anatômica da estrutura do corpo humano) do
anatomista Jacques-Bénigne Winslow (1669-1760), da
Academia Real de Ciências da França e professor da Faculdade de Medicina da
Universidade de Paris, publicado em 1732 e considerado o mais importante
trabalho de anatomia descritiva do século XVIII.
Do médico psiquiatra e químico escocês William Cullen
(1710-1790) havia dois volumes in-octavo de seu Éléments
de médicine pratique (Elementos
de medicina prática), que introduz, pioneiramente, na ciência moderna,
um sistema classificatório de doenças (a nosologia).
É considerado figura central da Ilustração escocesa. Era amigo e médico do
filósofo David Hume e mantinha muito boas relações pessoais com Adam Smith. De
1773 a 1790, exerceu o cargo de primeiro médico do rei da Escócia e como
professor da Escola Médica de Edimburgo, ajudou a transformá-la no principal
centro médico do mundo de língua inglesa (Doig, 1993,
pp. xii-xiii; Former, 2006, p. 222).
Em suas estantes também encontramos o Traité des
maladies vénériennes
(Tratado de doenças venéreas), em um volume in-octavo, do mestre em cirurgia francês Pierre Fabre (1716-1793); as Institutions de médicine pratique (Instituições
de medicina prática) de Philipe Pinel
(1745-1826), pioneiro no tratamento de transtornos mentais e precursor da
psiquiatria moderna, em dois volumes in-octavo; e
as Oeuvres (Obras) do médico neurologista suíço Auguste David Tissot (1728-1797), em sete volumes in-octavo,
que ajudou a popularizar a prática da vacina. Provavelmente dentro do conjunto
bibliográfico Oeuvres
estava encartado o seu mais famoso texto Avis au peuple sur
sa santé (Aviso ao povo acerca de sua saúde), de 1761, considerado o
“maior best-seller médico do século XVIII”. Suas
proposições foram reconhecidas e divulgadas pelos filósofos Immanuel Kant e
Voltaire (Singy, 2010, pp. 769-800).
A presença desses livros no escrutínio talvez se explique pelo interesse
que havia na época pela aplicação prática da medicina, para que se cubra uma
das necessidades prementes da sociedade colonial naquela época: a saúde da
população. É factível a hipótese que o cônego era um entendido na arte de
curar, a fim de impedir que muitos doentes fossem vítimas da ignorância de
curandeiros, barbeiros ou sangradores, que no Brasil colonial abundavam nas
vilas, cidades e áreas do interior, exercendo atividades médicas práticas que
necessitavam apenas do uso das mãos.
O cônego como um prático da medicina e preocupado em dar a conhecer aos
moradores de Mariana formas de manter a higiene e a saúde, onde, muitas vezes,
médicos não se faziam presentes, utilizava-se dos escritos de ciências baseados
na experimentação e na prática clínica existentes em sua livraria para
reproduzir e incorporar princípios médicos de autores que defendiam a medicina
moderna, adaptando-os as manifestações próprias das enfermidades existentes nos
trópicos e as possibilidades de tratamento disponíveis em Minas Gerais.
Ao interpretar os conteúdos daqueles livros, Luís Vieira, muito
provavelmente, ajustava os princípios que ali estavam escritos aos problemas
encontráveis nos lugares por onde andava em ações pastorais, procurando
diminuir as moléstias decorrentes das más condições de saúde e higiene da
população (Abreu, 2010, pp. 225-250).7
Supostamente praticava –como era hábito entre religiosos, de acordo com Ana
Carolina de Carvalho Viotti– uma espécie de medicina
casuística, atuando caso a caso, com foco no doente e não na doença,
“prescrevendo receitas com ingredientes disponíveis nas hortas das casas ou no
campo ao redor, constituído por plantas locais, capazes de substituir, com
vantagem, as plantas europeias, de difícil acesso e caras” (Arantes, 2018). O
acesso a orientações preceituadas por médicos ajudava a evitar que vigaristas
enganassem os doentes.
Ali também se encontrava, como parte do paradigma médico, o livro Astronomicon (Astronomia), do poeta e astrólogo romano Marcus Manilius (século i d. C.), em
um volume in-quarto, na qual apresentou, de maneira
pioneira, as doze casas do sistema astrológico e os signos do zodíaco, ligados
aos assuntos humanos. Na obra apresenta opiniões sobre a natureza dos cometas e
sua associação às calamidades que podem provocar para a agricultura e a
navegação. A edição apreendida pela devassa é a de 1739, organizada pelo
filólogo Richard Bentley. Dentre os seus pertences
também havia uma luneta.
A física, a agronomia e a botânica também estavam contempladas e em
sintonia com a medicina e a farmacopeia da época. Ali estavam os dois volumes in-quarto da obra Physicae elementa
mathematica (Elementos
matemáticos da filosofia natural), do físico, matemático e filósofo
holandês Willem Jacob’s Gravesande (1688-1742),
divulgador dos princípios da “filosofia natural” de Isaac Newton, de 1720, e
considerado o descobridor da energia cinética, o construtor do primeiro heliostato e inventor do anel de Gravesande, instrumento
metálico de estudo da dilatação e da contração volumétrica de corpos por
variação de temperatura. Outro sábio holandês, discípulo e amigo de Gravesande,
que também teve duas de suas obras na estante do cônego foi Pieter
van Musschenbroek (1692-1761), com Essai de physica (Ensaio de física), um volume in-octavo,
e Physica (Física), em dois volumes in-octavo, que ajudaram igualmente a propagar a filosofia
experimental e as ideias de Newton (Ducheyne, 2016,
p. 123). Ao lado destes havia a Physica
(Física) de Zanesi, em
dois volumes in-octavo, e um Nouveau
dictionnaire des scienses (Novo dicionário de
ciências), em dois tomos in-octavo, sem
indicação de autoria.
As ciências práticas e seus conhecimentos úteis ao dia a dia também se
fizeram representar no livro Manuel d’agriculture
(Manual de agricultura), um volume in-octavo, sem o nome do autor, mas que provavelmente
seja a edição do agrônomo francês Simon Philibert de
La Salle de l’Etang (1700-1765), muito lida na época.
O gosto pela ciência também se fazia presente nos livros de viagens,
história natural, geometria, química e geografia. Lá estavam, como marcas da
objetividade e do empirismo da Europa moderna, os quatro volumes in-octavo das Voyages au tours du
monde (Viagens pelo mundo), do naturalista e
botânico inglês Joseph Banks (1743-1820), de sua viagem pelo mundo, de 1768 a
1771, na expedição científica comandada pelo explorador e cartógrafo inglês
James Cook aos mares do sul, para formar sua coleção
de plantas e insetos. Acompanhado por uma pequena comitiva, que contou, entre
outros, com a presença do naturalista sueco Daniel Carl Solander,
discípulo de Carlos Lineu (o pai da biologia moderna, por ser o criador das
classificações dos seres vivos), Banks empenhou-se em sistematizar espécies de
plantas e defender a natureza internacional da ciência, sendo considerado uma
das pessoas mais influentes das ciências no século XVIII
(Lysagth, 2003).
Da química, os quatro volumes in-octavo de Elements
de mineralogie docimastique
(Elementos de mineralogia docimástica),
de 1772, do químico e mineralogista francês Balthasar-Georges
Sage (1740-1824), de grande êxito editorial; e Secret concernant les arts et les métiers
(Preocupação secreta sobre artes e ofícios), de
1766, em dois volumes in-octavo, de autoria
desconhecida, que trata dos segredos dos metais (Todericiu,
1984, pp. 29-46; Wisniak, 2013). Aliás, estes títulos
mantêm estreito relacionamento com a própria história de Minas, surgida a
partir da extração do ouro no final do século XVII.
Naquele contexto, possuir uma obra de docimástica –ou
a arte de testar metais– era importante, pois ensinava como analisar o teor de
minerais metálicos em ligas e minérios, possibilitando saber –como indica o
segundo título– os segredos dos metais.
Os conhecimentos transmitidos por estas duas obras poderiam servir aos
interesses e planos propostos pelos sediciosos de 1789 que se posicionavam
favoráveis em construir manufaturas e estimular a exploração de minérios de
ferro e a montagem de uma fábrica de pólvora, prevendo-se a defesa da futura
região independente de Minas Gerais. Ao longo do século XVIII,
Minas era a área de mineração mais importante do império português.
Os conhecimentos físico-matemáticos também se revelavam na obra Geometria, em dois volumes in-octavo,
do filósofo, físico e matemático René Descartes (1596-1650), o maior expoente
do racionalismo clássico que, ao propor a junção da álgebra com a geometria,
gerou a geometria analítica (ou cartesiana) e o sistema de coordenadas
matemáticas que hoje leva o seu nome. A ele é outorgado o título de fundador da
filosofia moderna, por introduzir a dúvida como elemento essencial para a
investigação filosófica e científica, e o epíteto de o pai da matemática
moderna (Spinelli, 1990, pp. 5-15).
Ao lado da obra de Descartes havia os Elementos de
geometria plana e sólida segundo a ordem de Euclides, em um volume in-quarto, do padre jesuíta e matemático Manuel de Campos
(1681-1758), impresso em Lisboa, com contribuições originais para o “estudo do
volume dos sólidos mais simples, hoje relegados à matemática escolar, e que
deram origem às noções de simetria e de equidecomponibilidade
dos sólidos”, problemas de pesquisa em fins do século XVIII
(Guimarães, Pitombeira, Schubring, 2011, p. 317).
Lá também estavam os cinco volumes in-quarto
da obra Elementa matheseos universae
(Elementos da matemática geral) do filósofo
racionalista alemão Christian von Wolff (1679-1754), um dos fundadores da
economia como disciplina acadêmica e sistematizador do racionalismo do século XVIII mediante a reelaboração da filosofia de Gottfried Wilhelm Leibniz. Foi um dos grandes nomes da
Ilustração alemã (Hettche, 2016).
Da história natural foram apreendidos dois títulos de livros do
naturalista francês Jacques Christophe Valmont de Bomaré (1731-1807), um volume in-octavo
das Memoires instructifs de l’histoire
naturelle (Memórias
informativas da história natural) e os seis volumes in-quarto do Dictionaire raisonné universalle
d’histoire naturelle
(Dicionário universal razoado de história natural),
impresso em Paris entre 1764 e 1768, que contém a história de animais, plantas,
minerais e dos principais fenômenos da natureza. Nesta mesma linha –a da
história geral da natureza– constam os Études de la nature
(Estudos da natureza) do botânico francês
Jacques-Henri Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814),
edição de 1784, em três volumes in-octavo.
Da geografia vinham obras de autores como o abade Louis-Antoine Nicolle
de Lacroix (1704-1760), com seus dois volumes in-octavo intitulados Géographie moderne (Geografia moderna),
impresso em 1748; e dois dicionários geográficos escritos em francês, sendo um
deles, provavelmente, a obra de Jean-Baptiste Ladvocat
(1709-1765), redigida sob o pseudônimo de François-Léopold
Vosgien, Dictionnaire geographique ou description
de toutes les parts du monde (Dicionário geográfico ou descrição de todas as partes do mundo),
de 1747, em um volume in-octavo.
Os saberes científicos transmitidos por essas obras, provavelmente
proporcionaram ao cônego Luís Vieira conhecimentos da geografia e das riquezas
naturais e minerais existentes em Minas Gerais, quando irromperam práticas
contestatórias em 1789. Como inconfidente e um dos organizadores das ideias
políticas da conspiração, foi um dos responsáveis pelo esboço das leis
fundamentais do futuro estado e da estratégia militar de defesa. Não é à toa
que na sua estante havia o livro Elementos de arte militar,
em dois volumes in-dieciseisavo,
de José Marques Cardoso, impresso em Lisboa em 1785.
Em depoimento à devassa, Domingos Vidal Barbosa Lage, que estudou
medicina em Montpellier e também implicado na Inconfidência, confessou que os
planos sediciosos nasceram do trabalho de Luís Vieira, e que este fizera o
projeto de segurança do território. (ADIM, 1976,
vol. 1, p. 214; 1978, vol. 2, p. 146).
No contexto dos acontecimentos independentistas, a obra Elementos de arte militar adequava-se aos propósitos e
práticas revolucionárias militares pensadas naquele
momento. O interesse pela arte militar e por mapas geográficos, como os treze
exemplares apreendidos entre os seus bens, permitia ao religioso melhor
entender o espaço geográfico de Minas, uma vez que a posse de mapas
representava um dado estratégico fundamental para o planejamento do movimento
sedicioso, já que permitia conhecer, em detalhes, a organização espacial da
capitania e as suas características geográficas dominantes.8
SABERES LOCAIS, ILUSTRAÇÃO E
INDÍCIOS DE LEITURA: O CÔNEGO LUÍS VIEIRA E A EXPLORAÇÃO COLONIAL NAS MINAS
GERAIS DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII
Um dos desafios enfrentados por quem pretende analisar
o escrutínio de livrarias antigas está na busca pela resposta a duas perguntas,
entre outras que se podem formular: possuir um livro significa o desenvolvimento
de práticas de leitura? Que usos os leitores (que podiam ser seus
proprietários) atribuíam aos livros?
Ao se procurar descobrir os usos explicitamente enunciados que os
leitores deram aos textos que existiam em suas bibliotecas, como realizado por
Luiz Villalta (2015) ao estudar os livros e as suas
utilizações sob o reformismo ilustrado, entre 1750 e 1822, não se pretende –o
que seria inexequível– “identificar [as] genuínas manifestações dos leitores”,
mas alguns de seus indícios como intérpretes de ideias que circulavam,
limitando-se apenas a “aprender os usos plausíveis
dos livros” (p. 325).
Como provável leitor do melhor que se produzia na Europa, Luís Vieira
acolhia em sua livraria obras da Ilustração que gozavam de ampla curiosidade
intelectual e notável abertura ideológica, sobretudo as impressas na França do
século XVIII. Em Minas Gerais se difundiram
princípios filosóficos e políticos ilustrados que versavam sobre a razão, como
o principal instrumento do homem para lidar com a natureza e a sociedade, assim
como para exprimir um complexo processo de transformações de comportamentos,
valores e atitudes, e até de funcionamento das instituições (Neves, 2000, p.
296).
Entre os séculos XV e XVIII ganharam força ideias como a de que o poder político
poderia ser uma concessão da sociedade aos governantes, e não um favor de Deus;
assim como a sentença de que todas as pessoas, independentes de serem nobres ou
não, eram iguais e tinham os mesmos direitos e deveres. A este conjunto
heterogêneo de ideias deu-se o nome de Ilustração, em oposição a um suposto
obscurantismo que a Igreja católica e as instituições –a nobreza, a monarquia e
a rígida hierarquia social– representariam. De acordo com os pensadores
ilustrados era por meio da razão (na dicotomia de “luzes” –representativas da
noção de progresso, em grande parte graças à ciência– e “trevas” –que se
ligavam ao atraso e a ignorância) que se atingiriam os conhecimentos
necessários para alcançar as leis naturais que regem a sociedade–. A ciência,
segundo pensadores e cientistas dos séculos XVI e XVII, como Descartes, Leibniz e Galileu Galilei,
“demonstrava que a natureza possuía leis próprias e independentes da vontade de
Deus” (Furtado, 1998, p. 32).
No século XVIII, pesquisas científicas e a
divulgação e “radicalização dessas ideias” alcançaram níveis sem precedentes
(Furtado, 1998, p. 32). Pensadores ilustrados criticavam o absolutismo, o
mercantilismo e a organização da sociedade, baseada em tradições e privilégios.
Acreditavam “que o estado absolutista, em que o monarca detinha todo o poder,
deveria ser substituído por um governo representativo, na forma de uma
monarquia constitucional ou de uma república democrática”. Condenavam a
ingerência do estado na economia, que era uma característica do mercantilismo,
e defendiam uma política econômica liberal, conduzida pelo livre funcionamento
do mercado (Anastasia, 2002, p. 23). Ideias, aliás,
que vinham ao encontro dos anseios libertários que começaram a circular na segunda
metade do setecentos na região de Minas.
Ideias ilustradas entraram em Mariana, a terra de Luís Vieira e onde
estava a sua importante livraria, de quatro maneiras. A primeira pela presença
de intelectuais europeus vindos para a colônia. A segunda, com o regresso dos
“brasileiros” que foram estudar nas universidades europeias. A terceira diz
respeito à presença de colonos que foram a Europa realizar transações
comerciais ou a passeio ou tratamento de saúde, por exemplo, que, ao regressar,
traziam consigo o melhor da cultura do além-mar. Uma “última” foi pela palavra
escrita, pois o livro foi o melhor e o mais eficiente método de difusão da
Ilustração no território colonial (Rodrigues, 2002, p. 145).
Muitos estudantes “brasileiros” que regressavam da Europa traziam, entre
os seus pertences, obras cujas posses e vendas eram proibidas. Outras vezes,
esses livros entravam por contrabando. Paulo Gomes Leite, ao estudar a
circulação de livros ilustrados em Minas nos fins do século XVIII, mostrou que um dos estratagemas mais bem
empregados para se despistar as autoridades era o livro proibido entrar no
Brasil sob um título suposto. Outras vezes, empregava-se a tática, muito usada
pelos contrabandistas para introduzir livros na França, como revelado por
Robert Darnton, de transportar os livros em folhas
soltas, intercaladas por páginas de outra obra, geralmente de teologia,
jurisprudência, sermões, etc., para afastar qualquer suspeita e agilizar sua
liberação. Era assim que o doutor José Pereira Ribeiro, residente em Mariana e
amigo do cônego Luís Vieira, transportava seus livros, fazendo chegar –por
contrabando– o arsenal ideológico que ajudou a inquietar os ânimos dos mineiros
e a embalar seus “sonhos libertários” (Leite, 2001, pp. 217-226).9
A Ilustração chegou às Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, como se disse. Até aquele momento, a região não
tinha nenhuma tradição no debate filosófico e não era dotada de academias
literárias ou de investigação científica para promover discussões. No entanto,
houve núcleos intelectuais nos quais a “dimensão crítica da tradição racional
foi acolhida, a fim de expor as arbitrariedades e algumas das injustiças
intrínsecas ao estatuto colonial” (Sevcenko, 1989, p.
23).
Sob o clima de despotismo e censura, a situação do letrado na sociedade
colonial confrontava-se com essas forças altamente coercitivas, que
representavam a condição de controle das ideias impostas pela metrópole. A
intransigência grassava principalmente em áreas em que se concentravam os
ávidos interesses régios, como a região mineradora de Minas Gerais. Os
intelectuais ali residentes, muitas vezes escritores e leitores de si mesmos,
nas horas vagas, reuniam-se em cenáculos literários, como os que ocorriam nas
casas dos também implicados na Inconfidência Mineira poetas Tomás Antônio
Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, em Vila Rica, para resolver o problema da
privação cultural. Nessas reuniões, as concepções ilustradas transmitidas pelos
livros de autores como Voltaire, John Locke, Rousseau, Antonio
Genuense, Montesquieu, Mably,
Robertson, Marmontel, Raynal,
Condillac, Linguet e Bielfeld, entre outros, circulavam e os ajudavam a
interpretar –mesmo que vagamente– o mundo em que viviam.
Entre os livros do cônego Luís Vieira e referindo-se a alguns desses
autores, lá estava Charles-Louis de Secondat, o barão
de Montesquieu (1689-1755), com dois de seus títulos: L’esprits des
lois (O espírito das leis),
em cinco volumes in-octavo, e Grandeur et décadence des Romains
(Grandeza e decadência dos romanos), em seis
volumes in-octavo; marcos importantes da Ilustração
francesa e responsáveis por mostrar as suas concepções a respeito da monarquia
e do despotismo. Em O espírito das leis, explica as
diferenças entre as sociedades e os sistemas de governo, pela teoria da
separação de três poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário. Sua
interpretação de liberdade, em oposição ao absolutismo, representado pela
autoridade de um só governante, explica-se –e foi interpretada pelos
intelectuais de Minas Gerais– pelo direito que as pessoas têm de poder fazer
tudo o que as leis facultam, inclusive rebelar-se contra governos opressores.
Outra obra ali presente era Institutions politiques (Instituições políticas),
um volume in-quarto, do barão de Bielfeld (1717-1770), um dos mais destacados expoentes da
Ilustração alemã, onde se pode ler “o mais violento ataque que já se fez à
Inquisição” (Leite 1995, p. 160). Com três escritos, William Robertson
(1721-1793), um dos limiares da Ilustração escocesa e também crítico da
Inquisição, por considerá-la repressora ao progresso das letras e da ciência,
aparece com Histoire de l’Écosse (História da Escócia), três volumes in-octavo,
Histoire du règne de
l’empereur Charles-Quint
(História do reino do imperador Carlos V), em três
volumes in-quarto, e o seu texto mais importante Histoire
de l’Amerique (A história
da América), em quatro volumes in-quarto.
François-Marie Arouet, pseudônimo de Voltaire
(1694-1778) e um dos mais incendiários autores da Ilustração francesa, também
ali se fez representar por um compêndio intitulado Oeuvres (Obras), em um
único volume in-octavo. Igual título também foi
atribuído ao conjunto de textos do abade Condillac
(1714-1780), em três volumes in-octavo.
Ao lado desses autores, entre outros que também se poderiam citar,
achavam-se em dois volumes in-octavo a Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné
des sciences, des arts et des
métiers (Enciclopédia ou
Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios), de Denis Diderot
(1713-1784) e Jean d’Alembert (1717-1783), “a obra suprema do Iluminismo”, no
feliz epíteto que lhe foi atribuída por Robert Darnton
ao reconhecê-la como o grande empreendimento editorial e a síntese do movimento
intelectual que varreu a Europa no setecentos (Darnton,
1996, pp. 15, 24-25). Naquela livraria também existia a seleção de seus
principais artigos, condensada no L’esprit de l’Encyclopédie (O espírito da Enciclopédia), em cinco volumes in-octavo.
Mas, voltando-se às tertúlias literárias, nos Autos de Devassa há
informações de que alguns dos encontros “subversivos” aconteceram nas casas dos
principais envolvidos na Inconfidência. Lá estabeleciam contatos e desenvolviam
discussões sobre a situação local.10
Em Vila Rica, na residência do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de
Andrada, a mais alta patente militar envolvida na revolta, ocorreram os mais
importantes encontros sediciosos e onde os conjurados, além de emprestar livros
e debater seus conteúdos, formulavam estratégias e esboçavam os contornos da
ordem que surgiria após o início da rebelião (ADIM,
1982, vol. 5, pp. 115, 172-173, 223; Villalta y Becho, 2007, vol. 2, p. 555).
Em certa ocasião, ainda em conversas ocorridas na casa de Francisco de
Paula, o anfitrião, o alferes Joaquim José da Silva Xavier (o Tiradentes), o
poeta Alvarenga Peixoto e os padres Carlos Correia de Toledo e José da Silva e
Oliveira Rolim debateram a Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
européens dans les deux Indes
(História filosófica e política dos estabelecimentos e do
comércio dos europeus nas duas Índias), do pensador francês abade Guillaume-Thomas François Raynal
(1713-1796), obra publicada, pela primeira vez, em 1770 e que, entre outras
coisas, analisa a colonização portuguesa na América e elogia as riquezas
naturais ali encontradas. Nas edições posteriores a 1780, a independência dos
Estados Unidos, saudada pelo autor como um modelo a ser seguido, passou a ser
interpretada pelos inconfidentes de 1789, em suas aspirações de independência,
como uma fórmula para fazer a revolução pela libertação da colônia (Furtado y
Monteiro, 2016, pp. 738-739; Villalta y Becho, 2007, vol. 2, pp. 555-578).
A obra do abade Raynal foi muito apreciada e
alcançou grande difusão, chegando alguns inconfidentes a citá-lo em seus
depoimentos no processo judicial. Em sua primeira inquirição, em 16 de novembro
de 1789, Francisco de Paula aludiu na conversa que teve com os quatro outros
participantes que estiveram em sua casa, que o dito abade “tinha sido um
escritor de grandes vistas; porque prognosticou o levantamento da América Setentrional,
e que a Capitania de Minas Gerais com o lançamento do tributo da derrama,
estaria agora nas mesmas circunstâncias” (ADIM,
1982, vol. 5, p. 173).
Em Minas Gerais, a partir da segunda metade do século XVIII, a mineração –a principal fonte econômica da
região– entrou em retração e a quantidade de ouro estabelecida como pagamento
anual para a sua extração, fixada em 1734 em cem arrobas anuais, ou 1474
quilos, começou a não ser honrada. Em 1750, foi estipulado que se esse mínimo
não fosse atingido, todos os moradores da capitania teriam de pagar a
diferença, mediante cobrança à força de um imposto individual –a derrama.11 Em 1789, a dívida que
Minas devia aos cofres portugueses era de 582 arrobas de ouro ou o equivalente
a 8.6 toneladas (Rodrigues, 2010, p. 19). Além de não poder saldar o que o
governo exigia, a população também não tinha como quitar suas dívidas
particulares. E, em meio à ameaça de se fazer cumprir a quitação daquele
débito, em 1789, membros ligados diretamente à administração da capitania e aos
estratos da justiça e da igreja, resolveram rebelar-se contra o domínio
português na região, prefigurando o estabelecimento de uma república em Minas.
A derrama, em si, seria o estopim para o início do movimento. Assim, em meio a
este contexto, é que as palavras de Raynal ecoaram
transvestidas em crítica as arbitrariedades e as injustiças que imperavam na
manutenção do jugo colonial.
Como se disse, a História das duas Índias, a
partir de sua edição de 1780, traz uma parte consagrada à Revolução Americana,
que mereceu, por parte do editor, uma edição em separado, intitulada Revolução da América, de 1781, contemplando títulos do
livro XVIII, tomo 4º da edição de 1780 (Furtado y
Monteiro, 2016, p. 738, nota 11).12
Foram estes escritos que muito influenciaram Vieira, a ponto de Alvarenga
Peixoto declarar que ele tinha uma “paixão dominante” pela história da América
inglesa (ADIM, 1982, vol. 5, p. 124).
Não é à toa que as principais acusações contra o cônego Luís Vieira
partem do pressuposto de ser ele “sabedor e conhecedor” da emancipação
norte-americana e dos fundamentos contidos na obra de Raynal
(ADIM, 1982, vol. 5, p. 173). Na carta-denúncia
entregue ao governador visconde de Barbacena, o tenente-coronel Basílio de
Brito Malheiro do Lago descreveu uma conversa que teve com o dito clérigo,
relatando que
este
não encobre a paixão que tem de ver o Brasil feito uma república; abonou o
Tiradentes de um homem animoso e que, se houvesse muitos como ele, que o Brasil
era uma república florescente; e que um príncipe europeu não podia ter nada com
a América que é um país livre; e que El-Rei de
Portugal nada gastou nesta conquista, que os nacionais já a tiraram dos
holandeses, fazendo a guerra à sua custa sem El-Rei
contribuir com dinheiro algum para ela; depois disto, os franceses tomaram o
Rio de Janeiro, que os habitadores da cidade lha
compraram com o seu dinheiro; e ultimamente concluiu que esta terra não pode
estar muito tempo sujeita a El-Rei de Portugal,
porque os nacionais dela querem também fazer corpo da república; e outras
coisas semelhantes que todas se encaminham ao fim da liberdade, que se
pretendiam (ADIM, 1976, vol. 1, p. 102).
A república, para o cônego, era símbolo de liberdade e as palavras que
lhe foram atribuídas demonstram os impasses da realidade social e política que
se vivenciava em Minas Gerais, assim como aos dois grandes elementos conscientizadores do movimento inconfidente: a questão da
contraposição metrópole versus colônia e o discurso
das leis e dos direitos de uma nação livre e independente. Os dizeres de Vieira
combinam a repulsa que se faz sentir da condição colonial e dos desmandos da
metrópole; sentimentos que já estavam arraigados e na mentalidade colonial,
exacerbados nas lutas contra os estrangeiros.
Na citação se vislumbram as ideias que fervilhavam naquele instante e
palavras como “conquista”, “terra”, “nacionais” e “América” propalavam o
sentimento que os moradores de Minas mantinham com o seu mundo colonial. O
vocábulo “conquista” é um exemplo disso, uma vez que exteriorizava o sentido de
que as terras do Brasil, sendo uma conquista, não eram propriedade de seus
habitantes, mas uma possessão portuguesa. Esse termo anulava qualquer ideia de
autonomia, já que ela era denominada e reivindicada por Portugal como uma
conquista. Não obstante, Luís Vieira, na sequência de sua fala, desfaz o
processo discursivo e ideológico da palavra “conquista”, pois ele recorda o
fato de que a conquista que realmente houve nas terras do Brasil foi a dos
“nacionais” que sozinhos defenderam e expulsaram os invasores estrangeiros. Nas
entrelinhas, ele disse que a conquista era dos nacionais (Focas, 2002, p. 179).
O cônego mostrava aprazimento quando conversava e lia com alguém “a
história do levante da América Inglesa”. Em depoimento, o contador português
Vicente Vieira da Mota disse que havia nos “filhos da América tal gosto e
complacência em ler a história da liberdade das Américas Inglesas, que lhe parecia
que se eles tivessem outra tal ocasião, a abraçariam” (ADIM,
1982, vol. 5, pp. 417, 410). Tal fala sugestiona que, para esses leitores de
Minas Gerais, a história da América inglesa servia para ler a própria história
da América portuguesa e para intervir nela, refletindo a divisão entre a
“opressão do domínio português” e a “consciência de liberdade” (Focas, 2002, p.
181; Villalta, 2015, p. 478).
O texto de Raynal foi resposta a questões
incitadas por circunstâncias particulares, e seu significado está integrado ao
seu contexto de comunicação (Darnton, 2014, p. 147).
Os excertos discutidos foram significativos, de acordo com a maneira como foram
interpretados em um tempo e local específicos. Em A
revolução da América lê-se:
Se
os povos são felizes sob a forma de seu governo, eles o conservarão. Se são
infelizes, não serão as vossas opiniões nem as minhas –será a impossibilidade
de sofrer mais e por mais tempo que irá determiná-lo a mudá-las, movimento
salutar que o opressor chamará de revolta, ainda que não seja mais que o
exercício legítimo de um direito inalienável e natural do homem que se oprime,
e mesmo do homem que não é oprimido (Raynal, 1993, p.
75).
Ou, ainda,
A
autoridade de uma nação sobre uma outra só pode ser fundada sobre a conquista,
o consentimento geral, em condições propostas e aceitas. A conquista não
vincula mais que o roubo. O consentimento dos ancestrais não pode obrigar os
descendentes. E não há condição que não seja exclusiva do sacrifício da
liberdade. A liberdade não se troca por nada, porque nada tem um preço que lhe
seja compatível (p. 78).
As palavras de Raynal permitiram aos
conspiradores questionar a situação que viviam e a proposta de rebelar era
tão-somente exercer um direito próprio, ainda mais pelo fato de que Minas
Gerais estava em constante opressão, em virtude da repressiva e escorchante
política econômica implantada pela coroa portuguesa no local.
Dessa maneira, os acontecimentos ocorridos com os americanos do norte serviram de exemplo para as possíveis convicções de
autonomia que ali se pensavam. Se tivessem igual oportunidade, não deixariam de
lançar mão dela, aproveitando para fundar uma república. A obra de Raynal trazia o modo de se fazer os levantes, isto é,
“cortando a cabeça ao governador e fazendo uma fala ao povo repetida por um
sujeito erudito” (ADIM, 1982, vol. 5, pp.
149-150), além de pensar a revolução como uma forma de superação das injustiças
e das desigualdades entre os povos.
Os inconfidentes viram, portanto, na bem-sucedida revolução americana um
modelo do que eles queriam para Minas Gerais, ao ponto de atribuírem um sentido
claramente subversivo à literatura em uma determinada ocasião: em sua segunda
inquirição à devassa, Alvarenga Peixoto afirmou que na casa de Cláudio Manuel
da Costa ou de Tomás Antônio Gonzaga, outros locais em que se realizavam
conciliábulos,
se
falou em umas bandeiras, que o Alferes Joaquim José da Silva Xavier tinha
ideado para servirem na nova premeditada República, que eram três triângulos
enlaçados em comemoração da Santíssima Trindade, se lembrou o Doutor Cláudio
Manuel da Costa das bandeiras da República Americana Inglesa, que era um gênio
da América, quebrando as cadeias com a inscrição –Libertas
aquo Spiritus–, e
que podia servir à mesma, e o Respondente lhe disse que seria pobreza ao que
ele respondeu que podia servir a letra –Aut libertas, aut nihil–, ao que o
Respondente se lembrou do versinho de Virgílio –Libertas quae sera tamen–,
que ele achou, e todos os que estavam presentes, muito bonito (ADIM, 1982, vol. 5, p. 122).
O verso em latim “Liberdade ainda que tardia”, de Virgílio, vencedor
como lema para a bandeira do território independente que se previa, traduz não
apenas um sentimento poético, mas, como lembrou Villalta
(2015), “a expectativa política guardada pelos conjurados no sentido de romper
os grilhões que atrelavam Minas a Portugal” (p. 479).
No contexto, o plano elaborado pelo cônego Luís Vieira necessitava de um
fato capaz de abalar a população.13
Este estopim seria a decretação da derrama, o elemento motivador e legitimador
do processo:
no plano estabelecia o dito cônego que se devia
esperar uma ocasião em que o povo estivesse desgostoso; e que depois se deviam
tomar os quintos e que, agora se tratava de lançar a derrama, contou a ele,
testemunha, Francisco Antônio de Oliveira Lopes que se tinha justo fazer o
rompimento, avisando-se a todos para se ajuntarem com a senha de dizerem –tal
dia é o batizado– com cujo aviso juntariam todos (ADIM,
1981, vol. 4, p. 147).
Com o lançamento da cobrança da derrama, os sediciosos mineiros
esperavam que, com as atitudes e reações contrárias a esse pagamento, a
população se levantasse e se unisse a eles, em torno da causa inconfidente. Com
o pagamento da dívida de 582 arrobas de ouro, a ser dividido entre toda a
população, não importando se fossem mineradores ou não, os mineiros –mesmo não
se sabendo ao certo como a cobrança seria realizada– veriam esvaírem-se todos
os seus cabedais para pagar uma dívida injusta, muitas vezes, acumulada por
gerações, uma vez que muitos dos devedores já estavam mortos ou tinham se
retirado das áreas auríferas por causa da retração da produção (Jardim, 1989,
pp. 34, 351).
Para ludibriar o inquiridor sobre o seu real envolvimento na
Inconfidência, Luís Vieira apropriou-se de outros textos de sua biblioteca, de
maneira sediciosa, como livros que narram à história do movimento de
Restauração portuguesa de 1640, tais como Histoire génerale
de Portugal (História geral de Portugal) do
historiador francês Nicolas de la Clède
(1700-1736), em três volumes in-octavo, e História genealógica da Real Casa Portuguesa, de Antônio
Caetano de Sousa (1674-1759). Para contradizer a importância da derrama e expor
a hipótese sobre as condições que não tornariam executáveis um movimento de
libertação em território mineiro em 1789, o cônego disse em depoimento à
devassa da Inconfidência:
Sabe
que na feliz aclamação de El-Rei D. João o quarto,
sendo uma causa tão justa, e tanto da vontade dos povos, perguntou, segundo a
sua lembrança, D. João da Costa, quais eram os generais, as armas, as alianças,
os soldados, que tinham prontos para se levantarem contra as armas de Castela,
e que isto foi bastante para se suspender a ação por oito dias, e talvez se não
executasse, se nisso não tivesse o maior perigo; e como poderia pensar que
tivesse feito a sublevação de Minas falta de tudo o necessário (ADIM, 1982, vol. 5, p. 248).14
O conteúdo implícito dessa narração, feita mediante uma analogia entre a
Inconfidência e a Restauração portuguesa de 1640, permite-nos pensar, como faz Villalta, numa comparação entre ambas, colocando-as em um
mesmo patamar. Consequentemente, se o movimento pela Restauração foi uma agitação
“justa” e da “vontade dos povos”, o movimento sedicioso mineiro, estando
assemelhada a ela, também seria. Se para o cônego a Inconfidência “equipara-se
à Restauração”, logo era também “uma causa justa, da vontade dos povos”; enfim,
“uma sedição legítima!” (Villalta,
2015, p. 490).
Ao propor um movimento legítimo nas Minas, o cônego esteve imbuído da
filosofia ilustrada. O mais importante é que considerava um levante contra o
monarca algo legítimo da “vontade dos povos”, a exemplo do exposto por Montesquieu
em O espírito das leis. Ao negar o princípio
legitimador do poder régio, realizava uma crítica ao absolutismo, também
presente em filósofos como Rousseau e Voltaire. Como ávido leitor das
filosofias revolucionárias setecentistas, esteve a par das ideias de igualdade
social, direito à liberdade e garantia do uso e desfrute da terra pelos
colonos. Mas, acima de tudo, os princípios norteadores de seu filosofismo
vieram do abade Raynal (Rodrigues, 2002, pp. 149-150;
Villalta, 2015, p. 490).
Como admirador do processo independentista norte-americano, o cônego
também se “apaixonou” pelas ideias contidas na coletânea Coleção
das leis constitutivas das colônias inglesas confederadas sob o nome de Estados
Unidos da América Setentrional, publicada em Paris, em francês, em 1778.
Em sua segunda inquirição à devassa, em 11 de julho de 1789, Luís Vieira
faz referência presumível que havia lido e tinha conhecimento dos documentos
constitucionais fundadores dos Estados Unidos da América. Sabe-se, pelos
depoimentos contidos no processo judicial, que ele era um dos redatores dos
preceitos da projetada república que se planejava instaurar em Minas Gerais. Em
seu fala disse:
como anda escrita e impressa a história da América
Inglesa, [...] tendo ele, Respondente, lido a sobredita história [...], podia
muito bem suceder que –em alguma ocasião, sem reserva de pessoas, porque se não
dirigia a fim algum particular– fizesse algum discurso ou conversasse sobre uma
ou outra América, persuadido que nisso não cometia delito algum, por ser este
fato muito próprio em sujeitos que têm alguma aplicação e versados na história
(ADIM, 1978, vol. 2, p. 150).
Para desenvolver os planos legislativos dos inconfidentes, Luís Vieira
apoiou-se na História das duas Índias, na Coleção das leis constitutivas das colônias inglesas da
América do Norte e nos treze mapas que lhe foram sequestrados, para pensar os
planos de defesa do território, em conjunto com as informações de salvaguarda
lidos, muito provavelmente, na obra Elementos de arte
militar de José Marques Cardoso.
Sob o impacto das obras de ciências e dos escritos filosóficos da
Ilustração identificados em sua livraria, assim como o modelo de independência
das colônias inglesas no norte da América e dos saberes locais, o cônego Luís
Vieira percebeu Minas Gerais e a revolta que ali se planejava dentro das
contradições que separavam a colônia (o Brasil) e a metrópole (Portugal).
Aliás, o seu modo de pensar, como a dos demais revoltosos eruditos, denota um
entendimento ilustrado do mundo, o que se reforça pela “inventiva apropriação”
do exemplo histórico da América inglesa, permeada pela leitura do abade Raynal e da Coleção das leis
constitutivas das colônias inglesas, como ele mesmo declarou ter
realizado em seu depoimento; possibilitando-nos enxergar indícios de leitura
(Furtado y Starling, 2013, pp. 107-132; Villalta, 2015, p. 500).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O inventário da livraria do cônego Luís Vieira da
Silva nos permite ter uma ideia dos tipos de obras científicas e filosóficas
que circulavam nas Minas Gerais da segunda metade do século XVIII, assim como nos possibilita evidenciar prováveis
indícios de leitura. Especificamente sobre seus textos científicos, observa-se
a abundância de títulos relacionados à medicina, coincidindo com a tendência
setecentista que defendia um caráter mais técnico e prático da ciência.
Nas suas estantes estavam os mais importantes e influentes pensadores do
mundo ocidental, assim como textos inovadores da ciência moderna. Sua cultura
livresca mostra-se em sintonia com as ideias da Ilustração que se divulgavam no
continente europeu, apesar das dificuldades e do controle impostos pela censura
para a chegada de livros na América portuguesa.
A provável “curiosidade” intelectual do cônego Luís Vieira o fez
participar de debates de teor claramente conspiratório nos cenáculos literários
existentes na cidade de Vila Rica. Ali é que entrou em contato com as obras de Raynal e com os textos constitucionais norte-americanos,
reunidos no Recueil,
possibilitando-lhe recorrer as ideias escritas nessas obras para interpretar o
mundo em que vivia. Não é à toa que essa interpretação tendeu a identificar a
difusão das ideias ilustradas como uma tomada de consciência da situação
colonial e o exemplo da bem-sucedida revolução norte-americana traduzia a
expectativa política pelo rompimento dos grilhões que prendiam Minas Gerais a
Portugal.
Os Estados Unidos, como objeto de sua boemia literária e fonte de
inspiração, utilizando-se as felizes expressões propagadas por Robert Darnton e Luiz Carlos Villalta,
em seus estudos sobre os sentidos das letras no mundo ocidental da época
moderna, ilustra o seu posicionamento como agente histórico e homem de seu
tempo.
A circulação de ideias e livros, em virtude de sua participação nas
reuniões e pela “atual” biblioteca que possuía, o fez ser considerado um dos
responsáveis pela elaboração das leis e dos planos militares que se pensavam
para a futura república de Minas Gerais. Informações observáveis nos indícios
de leitura que nos ficaram de suas “falas” no processo judicial aberto para
julgar a Inconfidência Mineira de 1789 e nos livros científicos que possuía em
sua livraria, identificados graças à versão manuscrita aqui utilizada, que nos
propiciou conhecer os seus títulos com exatidão e número de volumes, mesmo
aplicando sobre aquele inventário o recorte de separar apenas seus títulos
científicos, mesmo se incorrendo na parcialidade de não observar aquela
livraria como um todo.
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1 Para isto foram
fundamentais os suportes teóricos e analíticos presentes nos estudos de Daniel Mornet (Les origines intellectualles de la Révolucion Française,
1715-1787); de Robert Darnton (Boêmia literária e revolução; Edição
e sedição; Os best-sellers proibidos da França
pré-revolucionária; O beijo de Lamourette,
entre outros); e de Roger Chartier (Leituras e leitores na França do Antigo Regime; As origens culturais da Revolução Francesa; A ordem dos livros, entre outros). Para a história do
livro no contexto colonial brasileiro são pioneiros os estudos de José de
Alcântara Machado, Vida e morte do bandeirante
(1929), ao analisar o cotidiano e a intimidade dos moradores de São Paulo,
referenciados em inventários de 1578 a 1700, mostrou a existência de poucas
bibliotecas particulares; de Carlos Rizzini com O livro, o jornal e a tipografia no Brasil (1946), que
revelou o mundo da cultura impressa, desde a produção do livro até as academias
literárias; e Rubens Borba de Moraes com Livros e
bibliotecas no Brasil colonial (1979), que, ao investigar bibliotecas
institucionais, como as das entidades eclesiásticas –como a dos jesuítas– ou de
acesso público como a Biblioteca Real, no Rio de Janeiro, ou a Biblioteca
Pública da Bahia, legou importantes informações sobre os títulos ali
existentes, a censura, os agentes e estabelecimentos dedicados ao comércio de
livros e as tipografias coloniais (Villalta, 2007a,
vol. 2, pp. 249-252).
2 Para o universo
colonial brasileiro, destacamos: Abreu (2003); Algranti
(2004); Araújo (1999); Furtado (2014); Jobim (1987); Wegner
(2004).
3 De igual maneira,
advertimos aos leitores que, apesar de significativos, os estudos sobre as
bibliotecas localizadas em outras regiões da América ibérica, como Bahia,
Pernambuco, São Paulo ou Rio de Janeiro, não estão aqui contemplados, pois
extrapolaria o escopo proposto, que é analisar as obras de caráter científico
encontradas na livraria do cônego Luís Vieira da Silva. Os interessados em
conhecer sobre bibliotecas coloniais além do espaço mineiro podem consultar,
além das obras referenciadas nas notas 1 e 2, os estudos de Lessa (1946, pp.
339-345); Abreu (2003); e o organizado por Mollier
(2006).
4 Os sequestros, por
se constituírem processos a parte da devassa da Inconfidência, nunca foram
publicados integralmente. Apenas parte de seus traslados encontram-se impressos
na versão mais recente dos Autos de Devassa em seu sexto volume, de 1982
(“Traslado do sequestro feito ao cônego Luís Vieira da Silva”, pp. 83-93). As
informações tipográficas e os títulos dos livros aqui apresentados foram
extraídos de maneira original da versão manuscrita dos autos de sequestro
custodiados no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro,
sob o título de “Autos de sequestro em bens do cônego Luiz Vieira da Silva.
1803. [códice dl 70.11]”. Já no tocante aos
depoimentos, utilizamos a versão impressa, que, para este quesito, reproduz de
maneira completa o processo judicial. Ver: Autos de
Devassa da Inconfidência Mineira (1976-1983). Nas referências, a partir
de agora, a indicação a essa fonte impressa aparecerá grafada pela sua
abreviatura ADIM, seguida do ano, número de seu
volume e página.
5 Na historiografia,
os números de seus livros são discordantes. Frieiro
atribuiu àquela livraria 270 títulos distribuídos em cerca de 800 volumes.
Paulo Gomes Leite indicou 276 obras em 563 exemplares. Villalta
apontou 279 obras e 612 volumes (Frieiro, 1981, p.
20; Leite, 1995, p. 156; Villalta, 2007b, vol. 2, p.
302).
6 Os livros do cônego
Luís Vieira podem ser classificados em: livros religiosos (96 títulos em 225
volumes), jurisprudência (17 títulos em 39 volumes), história (24 títulos em 82
volumes), literatura (85 títulos em 114 volumes) e ciências (45 títulos em 109
volumes). Vale a ressalva que, em virtude dos sequestros e dos arranjos
políticos ali evidenciados, muitos dos livros dos inconfidentes, assim como
parte de seus patrimônios, se extraviaram, inclusive manuscritos de obras cuja
existência era conhecida, mas que não foram encontrados nos escrutínios
(Rodrigues, 2010, pp. 64-76).
7 Na América
portuguesa era comum que proprietários alfabetizados de fazendas, de engenhos e
de escravos tivessem entre seus bens materiais livros de medicina voltados para
o uso doméstico e prático. Pedro Nava, em seu estudo sobre a medicina “popular”
no Brasil, informa que muitos senhores exerciam práticas médicas adquiridas “na
capação de porcos e bezerros”, fazendo incursões pela cirurgia no coser de
“muita barriga aberta e pondo no lugar muita tripa exposta a pontaço de chifre e a fio de ‘lambedeira’” (Nava, 2003, p.
125).
8 No processo não há
a descrição dos conteúdos daqueles treze mapas. Entretanto, no contexto,
sabe-se que em meados da década de 1770, o sargento-mor José Joaquim da Rocha,
cartógrafo, memorialista e engenheiro, foi o responsável pela elaboração de um
conjunto cartográfico sobre Minas Gerais. Na devassa, foi acusado por alguns
réus de ter fornecido seus mapas para subsidiar o levante. Provavelmente,
dentre os treze mapas apreendidos ao cônego estejam cópias dos mapas de Rocha (ADIM, 1976, vol. 1, p. 166; 1981, vol. 4, p. 116; 1982,
vol. 5, pp. 48-49). Sobre a história e a análise desses mapas, conferir:
Furtado (2009, p. 155).
9 Em denúncia ao
Santo Ofício, o padre João Luís de Sousa Saião acusou José Pereira Ribeiro de,
ao embarcar de Portugal para o Brasil, trazer as Cartas
persas, de Montesquieu, sob o título de Sermons de Neuville (Leite, 2001, pp. 221-222; Darnton, 1992, pp. 33-36).
10 Nesses encontros
havia o empréstimo e a devolução de livros. Na casa de Francisco de Paula, o
poeta Alvarenga Peixoto disse ter pegado um livro por empréstimo, em depoimento
à devassa de 14 de janeiro de 1790 (“ao tirar um livro, como costumava”) (ADIM, 1982, vol. 5, p. 114).
11 Durante a segunda
metade do século XVIII, a derrama foi executada em
duas ocasiões: em 1763-1764 e em 1771-1772.
12 Aliás, uma das
edições comprovadas que circulou em Minas Gerais foi a segunda, datada de 1780,
em quatro volumes, constante na biblioteca do doutor José Pereira Ribeiro,
proprietário do exemplar lido pelo cônego Luís Vieira (Leite, 1995, pp.
155-156).
13 “Vieira [...] tinha
feito um papel em que mostrava a segurança deste país, e o modo por que se
devia fazer a rebelião” (ADIM, 1981, vol. 4, p.
146).
14 O primeiro a
desenvolver esta explicação foi Villalta (2015, pp.
459-500).